Embora com vontade de o fazer, confesso que ainda não tinha falado do livro "O Estado do Estado” do Paulo Rangel, porque ainda não o tinha lido até ao fim. Impressionantemente bem escrito, a ideia mais importante que me ficou da leitura destas 187 páginas de ensaio político foi a da necessidade de transformação de um Estado que já não é, de uma realidade política que algures, num processo que situa entre a queda do Muro de Berlim e o 11 de Setembro, deixou pura e simplesmente de existir, ou de ser reconhecível nos moldes tradicionais, justificando um novo processo constituinte e um repensar das suas estruturas face à sua incapacidade de resolução de problemas e do surgimento de novas instâncias globais de decisão. É mesmo esta multiplicação de poderes dentro e fora do Estado, a necessidade de articular poderes de regulação completamente distintos e colocados a diferentes níveis normativos, a urgência em garantir as liberdades das pessoas, e a perda da base territorial do Estado, que levam a falar de uma medievalização do poder contraposto ao modelo do Estado moderno que se deixou afirmar na Europa a partir do séc. XVI e XVII. Retomando um tema que sempre lhe foi caro, e sobre o qual escreveu há já uns anos no seu “Repensar do poder Judicial”, faz entroncar aqui, nesta “nova” necessidade de legitimar e exercer o poder e de o controlar, a questão da legitimidade e função dos tribunais. Uma vez que “os órgãos de Governo típicos – o Parlamento e o Governo Administração – perdem todos os dias capacidade de resposta e de actuação”, os tribunais assumem um papel cada vez mais importante na resolução dos conflitos sociais. Quer dizer: à medida que a lei perde em clareza, publicidade e precisão, à medida em que se vai tornando impossível aos órgãos legiferantes controlar as necessidades de enquadramento e de justiça do caso concreto, torna-se imperativo que os tribunais desempenhem parte do papel político de definição da justiça do caso, saltando muito para além da sombra da aplicação subsuntiva da norma jurídica como resultou da repartição de poderes saída da Revolução Francesa, e como foi sendo mantida por sucessivas Constituições até hoje. Mas o que, ao mesmo tempo, não pode ser feito sem repensar a legitimação e o controle democrático da investidura e actividade dos juízes e o sentido do próprio princípio da independência judicial. Depois de chamar a atenção para as fragilidades do Estado tal como ainda o entendemos, Paulo Rangel trata da questão europeia e da Constituição europeia, e a esse nível mostra-se um europeísta e um federalista convicto. Analisando os mecanismos de evolução constitucional constata como a Constituição portuguesa se foi sucessivamente adaptando a realidades e a imperativos constitucionais distintos, e conclui que, muito embora se trate agora de muito mais do que isso, o que coloca em crise o próprio paradigma constitucional que se foi mantendo, ao mesmo tempo não será por aí, pela adesão a uma Constituição Europeia que se perderá a identidade nacional que, julga, sairá mesmo reforçada pela necessidade de se pôr em contacto com outras realidades constitucionais. Mas o alerta e a nota de crítica política mais profunda deixou-a porventura para o fim, onde se debruça sobre as relações entre democracia, liberdade e claustrofobia. Sublinha aqui a necessidade de impor uma “democracia material ou de qualidade” que passa pela garantia da liberdade de expressão e comunicação e pelo pluralismo como pressupostos da escolha democrática. Pois, diz, “como garantir e realizar essa democracia de valores, essa república da tolerância e do pluralismo, se nunca como hoje se sentiu uma tão grande apetência do poder executivo para conhecer, seduzir e influenciar a agenda mediática”? E os alvos de condicionamento não são só os jornalistas e os media, mas o próprio cidadão comum: “a conjugação de uma grave crise económica com um discurso oficial de pensamento único, de auto elogio maniqueísta e de optimismo compulsivo, produz uma atmosfera propicia ao medo e ao receio do exercício da liberdade crítica e da assunção pública da divergência”. Alertando ainda para o que designa como “opressão fiscal” e tentativa de manipular as garantias criminais. Gostei muito da leitura, quer como modo de compreensão da nova realidade do Estado quer do pensamento do Paulo Rangel como político e candidato às eleições europeias. Só lhe peço desculpa como amiga se, em algum momento da minha apressada escrita como blogger, atraiçoei a verdade do que ele pensa, ou do que quis dizer...