Hoje o Mauricio e a Maribel chegaram à aula sorridentes, como sempre. Ele trazia um ramo de rosas brancas e cor-de-rosa na mão, embrulhado num saco do Consum. Rosas bonitas, gordas, abertas…viçosas.
Sempre gostei desta palavra. Viçoso é marca de confiança. Se é viçoso, é bom. E “viçosas” lembra-me a tia Gena. “Sra. Angelina, vá-me ao jardim e traga-me umas dálias viçosas p’ra esta jarra!”. Esta e outras ordens eram dadas em voz alta e fininha, enquanto se arrumava a casa da Granja para as visitas. A Sra. Angelina não era burra nenhuma e por isso já sabia tudo de cor. Mesmo assim aguardava a ordem – fazia parte do ritual. Tal como o faziam as janelas abertas para trás, as três bonecas “dama-antiga” de vidro cada uma com o seu vestido (verde, azul, cor-de-laranja) e o serviço das bolinhas. Todos os anos, salvo raríssimas excepções, as mesmas visitas bebiam o mesmo chá (Li-Kungo), na mesma chávena vermelha de bolinhas, rodeadas das mesmas bonecas, em cima das mesmas arcas. Só a excitação mudava de ano para ano. E as dálias. Diferentes, mas sempre viçosas.
Deixemos as recordações. O Maurício e a Maribel têm 22 e 21 anos, respectivamente. Conhecem-se desde crianças. Nasceram e cresceram ambos em Cochabamba, na Bolívia, tal como a Tânia. Lá, casaram e tiveram uma filha, agora com 4 anos. Estão cá há pouco mais de um ano. La niña ficou com os avós maternos. O Maurício diz que ela é muito parecida com a mãe. Uma sorte.
Pela primeira vez consigo descrever alguém usando apenas uma palavra: delicadeza.
A Maribel é baixa e larga, mas estou certa de que conseguia andar com dez latas atadas aos pés sem fazer barulho. Tenho a certeza de que não foi Criada num dia só. Foi pensada ao pormenor. Deus ponderou cada detalhe: o preto brilhante do cabelo disciplinado, a altura da testa, os olhos optimistas, a boca desenhada a pincel, os dentes perfeitinhos, à mostra na medida perfeita quando sorri. Se tem que falar, fá-lo baixinho, tranquilamente, sem no entanto perder nem um grama de alegria e até de rebeldia. No fim da Criação, Deus pegou nesta boneca, enfiou-a num molde, prensou-a um pouco e só a soltou no mundo quando achou que ela tinha o nível perfeito de achatamento e “redondez”. A Maribel é, além disso, tão viçosa quanto as rosas do saco do Consum, ou as dálias da Granja em dia de visita. Eu, para variar, faço figura de parva perante mais esta amiga sobrenatural: ela ainda não abriu a boca e eu já estou a sorrir.
O Maurício é um índio na civilização. É moreno alaranjado, tem os dentes brancos como se fossem de leite e um sorriso aberto e reguila. Está sempre a rir e dá-me ideia que viaja através dos equipamentos de futebol. A julgar pelas t’shirts, já foi a Madrid, a Munique, a Londres, a Manchester, ao Brasil, a Itália…e claro, a Barcelona – com o Messi. Estou a pensar seriamente mostrar-lhe o Porto no último dia: pelos olhos do Deco, para relembrar tempos de glória.
No fim da aula, o Mauricio pegou nas rosas e enquanto nos encaminhávamos para o Metro alguém lhe perguntou se eram para a Maribel. Ele disse que “si, pero no fui yo quien las dio“. A Maribel corou e sorriu, envergonhada. “Fueron mis jefes. Porque soy una buena cangura.” Risos. “Mauricio, andas a dormir…“. Mais risos. Diz a Sílvia, uma hondurenha simpática mas um pouco grosseira (ao lado da Maribel não é difícil): “Entonces se són de ella las rosas, porqué las llevas tu?” Resposta: “Si mi esposa es tan buena que merece esas rosas, así que supongo que será mejor que las lleve yo para intentar de ponerme a altura.“
O Maurício e a Maribel saem logo na primeira paragem. Penso sempre que gostava que eles morassem mais perto de mim, para poder conversar com eles mais tempo. Só quando saem do metro voltam a ser marido e mulher. Até lá são bons companheiros. Quando chegam à paragem, o Maurício carrega no botão, a Maribel põe-se atrás dele. Ele sai a correr, dá-me ideia de que vai sempre cheio de fome. A Maribel pára sempre. Olha para trás, sorri e acena aos que ficam. Depois dão-se as mãos e desaparecem quando o comboio entra no túnel.
Ana
Sem comentários:
Enviar um comentário