domingo, março 21, 2010
Ter sede
A viagem para Vila Real fez-se sob um sol abrasador, num desses dias de Setembro em que o Verão quer resistir à morte próxima e, num assomo de arrogância, se despeja num excesso.
Nunca o rapaz saíra da aldeia e seria natural que vivesse a experiência como uma aventura. Ia calado, sério e indiferente aos balanços, às curvas, às ravinas, imune ao calor e surdo aos protestos do Padre Silveira, esgazeado sob a sotaina.
Deus morava numa casa grande. Depois de deixar a trouxa sob um beliche de uma camarata cinzenta, levaram-no por corredores para ser apresentado ao ‘Deus’-reitor. Não tinha barbas, nem sequer muito cabelo, mas era uma personagem gorda e baixa que lhe pousou as mãos nos ombros e lhe premiu as clavículas com os polegares com tanta força que o miúdo se encolheu.
« Nosso Senhor escolheu-te, meu filho. Somos o distrito com mais vocações sacerdotais e os senhores padres aqui vão guiar-te e formar-te para que um dia sejas o pastor do rebanho do Senhor. A tua mãezinha lá no céu está muito contente com a tua vinda e está a ver-te. A principal, a mais importante regra aqui é rezar, estudar e obedecer. Nunca o esqueças: a obediência aos teus mestres é a obediência a Deus e nós somos os teus pais ».
Nesse momento o rapaz viu os olhos pequeninos do reitor. Não era desafio, não era temor, não era dúvida, apenas uma afirmação simples: o seu pai estava em Alviela. Terá sido a partir desse instante que começou a perceber que nem tudo o que se ouve é verdade e que talvez, afinal, os condenados no inferno fiquem mesmo cegos.
De repente uma outra sotaina com óculos levantou-se de um canto e o reitor terminou : « O senhor Padre Paula vai instalar-te. Vai meu filho e dá muitas graças ao Nosso Senhor Deus Pai pois foste escolhido entre tantos ».
De volta ao corredor, o Padre Paula perguntou-lhe se já tinha comido e levou-o à cozinha para que a senhora Eufémia lhe preparasse um ovo com arroz.
- Tens má cara. Como te chamas ?
- Arlindo.
- ‘Arlindo, minha senhora’. Não te ensinaram modos? É só labregos, valha-me Deus, e ainda por cima tísicos.
- Tenho sede minha senhora.
- ‘Se faz favor’, senhor príncipe, se faz favor é como aqui se diz.
- Se faz favor, minha senhora.
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douro
ResponderEliminarpublica o livro, se faz favor!
Um abraço
JAC
Estou como JAC.
ResponderEliminarHá que publicar!
Sim, espero que não fique inédito por muito mais tempo...
ResponderEliminarBjs
MFV