quarta-feira, março 17, 2010

Liberdade de expressão e rolhas

A propósito deste mais recente imbróglio santanista, no PSD, parece-me que cumpre esclarecer algumas ideias.

Ninguém é obrigado a ser membro de nenhum partido. Aliás, como ninguém é obrigado a nada a não ser pagar impostos; e mesmo aí, nem todos pagarão o que devem...

Quando alguém, voluntariamente, escolhe ser membro de alguma organização, naturalmente adere às regras por que se rege essa organização. Nomeadamente as regras de intervenção e de recato.

Ninguém terá dúvidas disso mesmo, no que respeita, por exemplo, às regras de confidencialidade aplicáveis nas organizações laborais. Sejam organizações de que tipo forem, privadas ou públicas, terão sempre regras dessas, que toda a gente respeitará, sob pena das mais graves sanções, nomeadamente o despedimento - com a única e pública excepção dos tribunais e da magistratura, que, embora as tenham também, não as compreendem, nem aplicam, por razões políticas ou outras; essas justiciais violações, que podem afectar direitos individuais seriamente, não alteram o essencial, que é a existência das regras e a necessidade do seu cumprimento.

Não lembrará a ninguém falar de "violação da liberdade de expressão", ou muito menos da liberdade de opinião, por causa de regras desse tipo.

Do mesmo modo, não se vê em que medida uma decisão de uma organização partidária, de expulsar um seu membro por se pronunciar em termos considerados inoportunos, em época de campanha eleitoral, possa ser uma "violação" do tipo descrito. Primeiro, porque a sanção é ridícula: expulsão do referido partido, no caso mais grave. Depois, porque os partidos, mesmo o comunista, têm órgãos próprios que permitem aos seus membros expressar-se "livremente" (embora isso possa ser questionável, no caso dos comunistas portugueses) quando e onde é oportuno. Finalmente, porque se a discordância é assim tão séria, não há nada que impeça uma pessoa verdadeiramente livre de expressar a sua opinião, quaisquer que sejam as circunstâncias. Como o demonstram todos os presos políticos no Mundo. Como já não há, felizmente, em Portugal.

Portanto, o que estará aqui em causa é outra coisa. Provavelmente, como escreve Rui Tavares no Público de hoje (aliás, sob o sugestivo título de "A aberração"), o que está em causa é uma certa concepção de autoridade e de disciplina.

E é aqui que discordo fundamentalmente do que escreve Rui Tavares, assim como discordo do que a generalidade dos comentadores têm escrito sobre a matéria - incluindo o nosso douro, em post disponível algo mais abaixo.

Primeiro, porque não há qualquer superioridade moral em ser libertário, por oposição a ser autoritarista, ou filosoficamente autoritário, como lhe chama Rui Tavares.

Segundo, porque defender a autoridade, e a disciplina - partidária, clubística ou outra qualquer -, não é nenhum defeito, por muito que essa seja a opinião dominante no momento actual. Especialmente em Portugal. Como vemos e sabemos pelo que se passa nas escolas nacionais.

A autoridade é um elemento importante de qualquer sociedade complexa e organizada. Pode ser bem exercida ou mal. Mas é fundamental a sua existência, assim como é decisivo o respeito pela autoridade. Seja ela natural ou "por força de lei", como será o caso de muitos impreparados agentes da "autoridade".

Poderia até afirmar que a forma como uma sociedade cultiva, impõe e defende o respeito pela autoridade é um sério indicador do seu nível de desenvolvimento... mas deixo essa defesa para outras núpcias.

Terceiro, porque a discordância com o líder e a cúpula partidária pode ser muito relevante e revelador do estado do próprio partido, mas não é, pelo menos numa democracia pluripartidária funcional, a expressão máxima, única ou sequer decisiva da "liberdade de expressão" - e menos ainda da liberdade de opinião! A sua expressão, sobretudo em épocas de campanha eleitoral, é acima de tudo um sinal de indisciplina. E um motivo de fofoca - que, receio bem, é a verdadeira razão porque a nossa imprensa confunde esta regra com um ataque à liberdade de expressão e, pior ainda, de opinião...

Finalmente, porque, independentemente do que pensem os auto-denominados libertários, o respeito pelas regras, nomeadamente as que defendem a autoridade e a disciplina, são uma condição da sofisticação social - as sociedades evoluídas não tem menos regras do que as outras, bem pelo contrário; o que não quer dizer que todas as regras são impostas pela força, muitas delas são-no apenas pela "força" das convenções sociais (mas isso é outra conversa).

Outro aspecto, paralelo mas conexo com este, é reconhecer que em Portugal nem se respeita a autoridade, nem a autoridade se dá ao respeito - frequentemente. E portanto, sobre disciplina estamos conversados.

Dito isto, repito o que me motiva: não vejo o que tem esta regra da "rolha" social-democrata de tão extraordinário. Mas como o País anda sem norte, tudo é possível... até confundi-la com ataques às liberdades fundamentais da expressão e da opinião.

O que essa confusão representa é o desrespeito mais básico pela liberdade individual e a correspondente responsabilidade: só é membro de um partido quem quer e, naturalmente, quem quer deve saber respeitar as lideranças legitimamente escolhidas. E combatê-las onde é próprio, quando oportuno e pelos canais próprios - canais esses cuja existência, essa sim, implica o respeito pelas liberdades de que aqui falamos; o que quer dizer que a sua eventual inexistência é que representa uma violação das ditas liberdades. Aí é que as coisas são sérias!

O que também sei é que o exercício dessas liberdades é hoje claramente punido; nas promoções nas carreiras, nos convites para os lugares, etc. etc. Hoje premeia-se a fidelidade, não se respeita a independência, de opinião ou outra, e confunde-se lealdade e lisura com a dita fidelidade - partidária ou outra. E disto, ninguém fala...

Essa é que é essa.

É possível um Portugal melhor. Mas é preciso querer.

PS. Para não me acusarem de coisas inconfessáveis, aqui me assino: Francisco Meireles

3 comentários:

  1. Um partido não é um clube, um sindicato, uma igreja ou uma escola. Um partido é, sobretudo no nosso sistema, a mais elevada forma de expressão de cidadania e o seu objecto é a organização politica da sociedade. As concepções do 'centralismo democrático' podem legitimar o seguimento de uma determinada linha politica mas não autorizam o silenciamento da discordância, até porque se trata de escolher em periodo eleitoral o que importa a todos. Mas se pensar assim é ser 'libertário', sê-lo-ei com gosto.

    ResponderEliminar
  2. Eu nunca proporia uma lei destas. Mas percebo a ideia de quem foi bombardeado enquanto presidente. Um partido politico como diz o douro não é um clube. deve ser um local de debate de ideias, de confronto mas a partir de determinado momento tem que haver uma linha que saiu vencedora e tem que poder trabalhar em paz. por isso mesmo critiquei PPC no PSD e muito do ruído que houve no CDS no consulado de Ribeiro e Castro. As forças tem que estar concentradas em combater para fora e não para dentro. Mas já dizia Churchill que os adversários estavam na bancada da frente e os inimigos na sua.....Percebo por isso o ponto do Ventanias e percebo o libertário douro. Estranho mundo este de bipolar.

    ResponderEliminar
  3. PS2- Libertário é aqui usado no estrito sentido, quanto a mim oportunista (para não dizer errado, por descontextualizado e simplista, por estar reduzido a uma interpretação que lhe interessa) em que o usou o Rui Tavares na sua coluna de opinião do Público, a que me referi no artigo.

    ResponderEliminar