É sabido que Pedro Passos Coelho é um praticante do canto lírico.
A propósito das eleições no PSD, lembrei-me desta crónica do José Manuel dos Santos, publicada em Setembro no Expresso.
"Cantores
Nessa noite, Plácido Domingo cantou no Teatro de São Carlos o "Otelo", de Verdi. Depois da récita, houve uma ceia no Palácio de Belém. Embora os aplausos sejam a moeda habitual com que se paga a felicidade de o ouvir, a verdade é que, mesmo quem os costuma receber, não fica indiferente ao recebê-los mais uma vez. E os daquela noite no São Carlos foram longos e vivos e vibrantes. Por isso, o cantor estava alegre e falador nessas horas da ceia.
Entrou no Palácio com uma desenvoltura de fidalgo e uma elegância de dandy. Sobre o fato de caxemira azul caía-lhe uma capa preta com alamares de prata. Mário Soares saudou-o com afecto e elogiou-lhe a veste, juntando à justiça que, sem favor nenhum, lhe fazia, o acolhimento de anfitrião e o à-vontade de quem está bem no mundo. Diga-se que a hospitalidade foi retribuída: passados alguns dias, o tenor mandou entregar, no Palácio de Belém, uma capa igual à sua, que Soares nunca usou, tão ostensiva e refinada ela era.
Tomados os aperitivos, foi-se para a mesa. Plácido Domingo mostrou-se muito carinhoso com Amália, dizendo a grande admiração que tinha por ela. Os dois chegaram mesmo a trautear um fado em conjunto. Depois, a conversa continuou viva. Plácido lembrou figuras que conhecera: reis e presidentes, maestros e cantores, escritores e artistas, futebolistas e mundanas. Tão bom contador de histórias como Soares, entre eles houve um despique e a noite tornou-se ágil e leve como tudo o que nos tira do tempo.
Não querendo parecer o que não é, Mário Soares, a certa altura, confessou-lhe que não tinha 'ouvido musical' e que não era melómano. Revelou-lhe os gostos e as preferências, simples e comuns (algumas árias das mais conhecidas), e falou-lhe de Piaf, desafinando o refrão da 'Vie en Rose'. Mas ia à ópera quando entendia que o Presidente aí não devia faltar. Fora o caso naquela noite! O cantor agradeceu-lhe redobradamente a homenagem; depois, as histórias continuaram e o fim de cada uma era continuado por gargalhadas.
Plácido Domingo contou então uma história inesquecível. Com um magnífico poder evocativo, narrou-a assim: numa pequena cidade da província italiana, havia um velho teatro, com uma grande tradição. O público, embora modesto de condição económica, era sabedor e exigente de gosto musical. Uma noite houve em que se representava uma ópera, na qual, num dos actos, se sucedem duas árias: uma cantada por um tenor; outra, por uma soprano. Os cantores daquela companhia eram todos muito maus e o público estava furioso com isso. À medida que a récita decorria, as reacções dos que a ela assistiam tornavam-se mais impacientes, mais hostis, mais ruidosas. Quando chegou a altura das duas árias sucessivas o tenor entrou em palco e começou a cantar. Cantava e desafinava. Mas habituado ao desastre que era, não se intimidava. Cheio de desfaçatez, continuava a cantar com um à-vontade e uma arrogância que nem ao melhor cantor do mundo (Soares interrompeu neste momento e disse a Domingo: "Está a falar de si!") se perdoaria. O público agitava-se, aguardando o fim com ar feroz e ameaçador. Mal foi dada a última nota (até essa desafinada), desatou a patear furiosamente. O tenor fitava com ar desafiador aqueles que uivavam e batiam freneticamente os pés. Essa atitude insolente ainda os enfurecia mais e a vaia aumentava de intensidade e vigor. Parecia que a sala vinha abaixo. Então, o cantor começou a fazer gestos, sacudindo as mãos lentamente. Quando os espectadores compreenderam que ele estava a pedir-lhes que se acalmassem, a pateada ainda se tornou mais agressiva. Mas o cantor continuava a mover as mãos, agora com humildade forçada ou fingida, pedindo que escutassem o que tinha para dizer. Pouco a pouco, com contrariedade e desconfiança, o público lá foi diminuindo a sua fúria sonora. Quando o silêncio era total, o tenor fez o seu olhar viajar da plateia aos camarotes e dos camarotes à plateia, encarando os rostos dos que o fitavam. Tossiu para aclarar a voz e, nesse momento solene, disse, alto e bom som: "Não pateiem já tudo. É que a soprano que canta a seguir ainda é muito pior do que eu!..."
Comemoram-se agora 40 anos do lançamento da carreira internacional de Plácido Domingo, na Arena de Verona. A "Babelia" ("El País") pôs, na capa, uma fotografia dele, desse tempo ido, legendando: "Él es la ópera". Ao ler esta evocação, lembrei-me daquela noite de Belém e da história que então lhe ouvi contar e que agora vos contei. E, ao lembrá-la, pensei: afinal, esta é uma história que tem muitos ensinamentos úteis para o tempo que estamos a viver... "
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