quarta-feira, novembro 14, 2007

Pág. 161, linha 5

A seguir ao João, é agora a minha vez de cumprir o desafio que me fizeram do Cachimbo de Magritte. É um desafio muito engraçado, mas tem que se lhe diga, porque nem sempre a página 161 dos livros, e a sua linha nº5, inspira particularmente os autores. É pena, deviam parar exactamente por aí, reflectir, fazer uma afirmação profundamente inflamada e poética, para só então seguir em frente, mas a maioria parece não querer colaborar com o “desafio” :-)

O livro que eu estou a ler – reler – chama-se Flatland, é escrito por Edwin Abbott (Assírio e Alvim) e conta a história da Flatland, uma terra que é habitada por linhas rectas, triângulos, quadrados, pentágonos, hexágonos e outras figuras, que se movimentam livremente ao longo da superfície da terra sem que a sua forma seja reconhecida pelos outros habitantes que as vêm como os marinheiros vêm a linha do horizonte, isto é, como linhas rectas desprovidas de qualquer dimensão e de volume (como se fossem moedas pousadas numa mesa e vistas à altura da borda da mesa). O livro arriscava-se a não ter graça nenhuma se não fosse o facto de, a certa altura, um desconhecido vir buscar um dos habitantes da Flatland para lhe mostrar outras dimensões do seu mundo. Eleva-o acima da terra, até à Spaceland, e deixa-o ver a partir daí a configuração dos objectos de que só conhece a aresta visível (permitindo-lhe a identificação de uma segunda dimensão, e a percepção de que se trata de círculos, de triângulos e de rectângulos) ensinando-lhe depois o conceito de volume (mostra-lhe que pode haver cubos além de quadrados, isto é, uma terceira dimensão). Ora, a partir da revelação desta verdade, de regresso à Flatland, instala-se o caos nesta terra sem dimensões. Como grande parte dos desencontros na vida decorrem do uso de diferentes perspectivas e escalas, e como os habitantes da Flatland só têm uma perspectiva dos objectos, a que os leva a vê-los na sua dimensão plana, não aceitam o “evangelho da terceira dimensão”, e o habitante visionário da Flatland é preso. Gosto muito deste livro porque nos dá uma explicação bastante imaginativa daquilo em que assenta a intolerância, a incapacidade de se ir para além da visão das coisas a "uma dimensão", que é quase sempre a mais pobre, a mais mesquinha e a que abre menos horizontes, mas que é inevitavelmente a que condena mais depressa o que usa outras escalas, vê a mais cores, ou alcança a segunda e a terceira dimensão. O que é certo é que este livro não tem página 161. Acaba na pág. 150. Por isso, calculo que não sirva.

O outro livro que estou a ler – intermitentemente - é a Ronda da Noite da Agustina. Sou uma grande admiradora da Agustina porque a acho uma alma inquieta, curiosa, profundamente conhecedora do espírito humano, e que é capaz de apanhar no ar as principais características de certas maneiras de ser para criar protótipos, categorias de pessoas, algumas das quais nos são profundamente familiares. Mas a página 161 da Ronda da Noite acaba por ser uma profunda desilusão. Não serve.

A partir daqui passei a usar um método mais sistemático. Abri o “Deus das pequenas coisas” do Arundhati Roy, na pág. 161 a ver o que por lá se dizia, e na quarta e na quinta linha, no meio do que também considero ser uma página relativamente banal, encontrei uma afirmação que me disse bastante: “E uma vez mais, só as pequenas coisas foram ditas. As grandes coisas permaneceram lá dentro por dizer”. O que acontece tantas vezes. Por distracção, por medo, porque as grandes coisas expõem e mexem connosco, porque não nos permitem ficar indiferentes ou com o dia intacto, porque exigem palavras estranhas, porque podem criar mal estar ou exigir afastamentos, porque obrigam a enfrentar o que nos vai por dentro que é sempre muito difícil. Já deixei coisas grandes por dizer, mas intuo que também já mas deveram e não mas disseram. Em todo o caso, a frase também tem outro sentido, e esse é em louvor das pequenas coisas. É que nelas vai muitas vezes contida toda a verdade das grandes e, por isso, estas acabam por ser mais ou menos dispensáveis.

Adorei fazer isto, e continuava, mas acho que cumpri o desafio. Cabe-me agradecê-lo ao Gonçalo Moita, e passar a pasta a mais três bloggers. Pensei em desafiar o Filipe Anacoreta do Cachimbo de Magritte, o Zé Maria Brito s.j, do Optimista por Opção, e o Ventanias cá da casa...

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