Hoje, reincido aqui no Nortadas. O que lhes vou contar não é ficção, e vou-me esforçar por ser o mais fidedigna possível na transcrição da conversa que ouvi há cerca de três horas. Estava eu no fundo das escadas que dão acesso à escola da minha filha, completamente distraída, ao que sempre ajuda ver muito mal e dormir pouco, quando ouço uma vozinha que não parecia pertencer a uma miúda com mais de onze, doze anos de idade, e não pertencia mesmo, perguntar: “Estás a ver a Francisca?”. Aí, olhei para o lado. Duas amigas, semi-deitadas nas escadas, discutiam "assuntos da vida", e prestavam naquele momento atenção a uma terceira garota, que eu presumi que fosse a dita Francisca, que arrumava livros numa mochila a uns metros dali com um ar absolutamente imperturbável e satisfeito. A minha contemplação terminou de forma violenta. “Ela vai ter um filho, e não sabe quem é o pai” (Santo Deus, pensei eu, espantada com aquilo tudo, e completamente baralhada com o ar sereno da pequena que parecia aceitar os reveses da vida com tanta naturalidade) “É”, repetiu a mesma cachopa, já a olhar para mim de esguelha, “vai ter um filho, mas não sabe quem é o pai”. E logo a seguir, corrigiu com uma gargalhadinha: “quer dizer, o Tamagoschi dela é que vai ter o filho”. Respirei de alívio, mas foi sol de pouca dura. “Sabes? Se for rapaz ela diz que não o quer. Se for rapaz, ela mata-o, e começa tudo outra vez até ter uma menina”. A outra concordou. Ela própria já tinha tido que eliminar vários rapazes. Nesta altura, invoquei mentalmente um Santo qualquer, mas enquanto digeria a dose de “aborto eugénico” que me acabava de ser tranquilamente servida, a aula sobre experiências nazis nos Tamagoschis continuava. “O da Luísa é que já está muito velho. Mas o filho já está ao lado no ecrã pronto para o substituir. É só ele morrer. Pode ser hoje ou amanhã. Pode ser a qualquer minuto agora. É bom. Assim vem um novo. Mas se demorar muito a morrer ela também o mata. Tem que ser”.
Santa Rita, Santa Joana, Santa Madalena, Santo Antoninho nos valei!!!
Santa Rita, Santa Joana, Santa Madalena, Santo Antoninho nos valei!!!
Cara Paula,
ResponderEliminarAinda se espanta da leviandade com que estas moçoilas encaram tudo isso? Só de pensar que a hipótese de a Francisca estar mesmo grávida escandaliza cada vez menos...
Quanto ao resto, já se sabe: agora que somos modernaços, as nossas futuras gerações nem vão passar da fase do Tamagotchi intra-uterino. E depois venham falar-me em sustentabilidades.
Se isto continua assim, é fazer as malas para Dublin e andou! Ao menos aí, as leis são mais decentes e ganha-se melhor - acho eu.
Cordialmente,
Fernando Barragão.
É que não são os Tamagotchi' que têm vidas semelhantes às nossas.
ResponderEliminarMas ao contrário - precisamente ao contrário - nós é que cada vez mais temos vidas semelhantes à dos Tamagotchi'.
É p'ró que está!
Triste, mas é!
Calma, calma, não entremos em pânico.
ResponderEliminarHá uma diferença essencial que as meninas não desconhecem: os tamagochis não lhes podem fazer nada elas sabem que o que quer que lhes façam ficará impune.
Não assim entre nós, humanos. Se a menina aborta, tem que o fazer sobre o seu próprio corpo. Se a menina mata os papás velhotes sabe que um dia os filhos lhe farão o mesmo...
É diferente.
Claro que é. Mas o "princípio" não é dos melhores, convenhamos....
ResponderEliminarA linguagem do mata naturalizada soa-nos a monstruoso.
ResponderEliminarIsso é o pior de tudo. A naturalidade com que se encara a morte do tamagoschi. Mas afinal, o tamagoschi é uma coisa, ou não é?!
ResponderEliminarQuando os Tamagoshis apareceram, andava toda a gente preocupada com as criancinhas, pois achavam que estas teriam imensos problemas a lidar com a morte (dos tamagoshis).
ResponderEliminarPronto. Tá resolvido.