sexta-feira, abril 13, 2007

Tamagoschis

Hoje, reincido aqui no Nortadas. O que lhes vou contar não é ficção, e vou-me esforçar por ser o mais fidedigna possível na transcrição da conversa que ouvi há cerca de três horas. Estava eu no fundo das escadas que dão acesso à escola da minha filha, completamente distraída, ao que sempre ajuda ver muito mal e dormir pouco, quando ouço uma vozinha que não parecia pertencer a uma miúda com mais de onze, doze anos de idade, e não pertencia mesmo, perguntar: “Estás a ver a Francisca?”. Aí, olhei para o lado. Duas amigas, semi-deitadas nas escadas, discutiam "assuntos da vida", e prestavam naquele momento atenção a uma terceira garota, que eu presumi que fosse a dita Francisca, que arrumava livros numa mochila a uns metros dali com um ar absolutamente imperturbável e satisfeito. A minha contemplação terminou de forma violenta. “Ela vai ter um filho, e não sabe quem é o pai” (Santo Deus, pensei eu, espantada com aquilo tudo, e completamente baralhada com o ar sereno da pequena que parecia aceitar os reveses da vida com tanta naturalidade) “É”, repetiu a mesma cachopa, já a olhar para mim de esguelha, “vai ter um filho, mas não sabe quem é o pai”. E logo a seguir, corrigiu com uma gargalhadinha: “quer dizer, o Tamagoschi dela é que vai ter o filho”. Respirei de alívio, mas foi sol de pouca dura. “Sabes? Se for rapaz ela diz que não o quer. Se for rapaz, ela mata-o, e começa tudo outra vez até ter uma menina”. A outra concordou. Ela própria já tinha tido que eliminar vários rapazes. Nesta altura, invoquei mentalmente um Santo qualquer, mas enquanto digeria a dose de “aborto eugénico” que me acabava de ser tranquilamente servida, a aula sobre experiências nazis nos Tamagoschis continuava. “O da Luísa é que já está muito velho. Mas o filho já está ao lado no ecrã pronto para o substituir. É só ele morrer. Pode ser hoje ou amanhã. Pode ser a qualquer minuto agora. É bom. Assim vem um novo. Mas se demorar muito a morrer ela também o mata. Tem que ser”.
Santa Rita, Santa Joana, Santa Madalena, Santo Antoninho nos valei!!!

7 comentários:

  1. Cara Paula,

    Ainda se espanta da leviandade com que estas moçoilas encaram tudo isso? Só de pensar que a hipótese de a Francisca estar mesmo grávida escandaliza cada vez menos...
    Quanto ao resto, já se sabe: agora que somos modernaços, as nossas futuras gerações nem vão passar da fase do Tamagotchi intra-uterino. E depois venham falar-me em sustentabilidades.
    Se isto continua assim, é fazer as malas para Dublin e andou! Ao menos aí, as leis são mais decentes e ganha-se melhor - acho eu.

    Cordialmente,
    Fernando Barragão.

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  2. É que não são os Tamagotchi' que têm vidas semelhantes às nossas.

    Mas ao contrário - precisamente ao contrário - nós é que cada vez mais temos vidas semelhantes à dos Tamagotchi'.

    É p'ró que está!
    Triste, mas é!

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  3. Calma, calma, não entremos em pânico.
    Há uma diferença essencial que as meninas não desconhecem: os tamagochis não lhes podem fazer nada elas sabem que o que quer que lhes façam ficará impune.
    Não assim entre nós, humanos. Se a menina aborta, tem que o fazer sobre o seu próprio corpo. Se a menina mata os papás velhotes sabe que um dia os filhos lhe farão o mesmo...
    É diferente.

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  4. Claro que é. Mas o "princípio" não é dos melhores, convenhamos....

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  5. A linguagem do mata naturalizada soa-nos a monstruoso.

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  6. Isso é o pior de tudo. A naturalidade com que se encara a morte do tamagoschi. Mas afinal, o tamagoschi é uma coisa, ou não é?!

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  7. Quando os Tamagoshis apareceram, andava toda a gente preocupada com as criancinhas, pois achavam que estas teriam imensos problemas a lidar com a morte (dos tamagoshis).
    Pronto. Tá resolvido.

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