Tenho vindo a evoluir a minha posição em relação à realização de referendos, num sistema de democracia representativa, no sentido de defender que só devem ser referendadas matérias de carácter constitucional ou quase - i.e., em referendos locais, compreendo que a constitucionalidade deverá ser entendida 'cum grano salis'.
A questão do aborto é claramente uma questão constitucional. No sentido material, no sentido em que é definidora do estádio de desenvolvimento de uma sociedade ocidental, para o bem e para o mal. Por conseguinte, não me oponho, de princípio, à realização de um referendo nesta matéria. Sobretudo se a questão for a do carácter criminoso do acto da abortante. Por outro lado, entendo que a actual lei é no essencial uma boa lei, tanto na perspectiva filosófica como na perspectiva cristã da vida em sociedade, como ainda do equilíbrio entre a protecção da vida e os outros valores que possam estar em causa. Por conseguinte, compreendo que a posição do CDS quanto è realização desse referendo deva oscilar entre a abstenção e a oposição. Sem dramas.
No que respeita à questão de fundo, reconheço que actualmente o sentimento social dominante não é considerar o aborto um comportamente socialmente censurável, no sentido de o valorizar como um crime; mesmo se a grande maioria da sociedade terá consciência de que se trata de terminar uma vida. Porém, creio que a questão não se esgota aí, nesse sentimento dominante.
Numa perspectiva filosófica, defendo que as pessoas devem ser responsabilizadas pelos seus comportamentos e pelas suas escolhas. Por conseguinte, compreendo que em situações em que as pessoas não foram livres, no momento do acto que criou a vida, possa ser defensável o desejo de recorrer ao aborto. É claramente o caso da violação. Do mesmo modo, compreendo que o recurso ao aborto possa ser defensável quando esteja em causa a vida da mãe ou mesmo da criança. Sempre se tratará de uma escolha entre dois valores. E sei que, na perspectiva médica, quando esteja em causa a vida da mãe, a escolha verdadeiramente não existe; o médico deve agir para defender a vida que está em causa (a da mãe), mesmo que isso ponha em causa a vida do nascituro (aquele que iria nascer). Mas ainda aí aceito que a escolha possa caber à mãe, ouvido o marido se for caso disso, visto que ela terá o direito de recusar o tratamento a não ser que a vida da criança seja inviável. Já tenho mais dúvidas no terceiro caso que a lei actual admite, que é o de mal-formação grave da criança, mas ainda aí sou capaz de compreender que se defenda o recurso ao aborto numa situação destas, se for essa a vontade dos pais.
E isso leva-me a um dos pontos que raramente é debatido nesta matéria, em minha opinião, erradamente. Quando se trate de mulher casada, será que o marido não tem o direito de ser ouvido perante uma situação em que esteja em causa a decisão de abortar? Creio que sim, mesmo nos casos de eventual abuso, etílico ou não.
O que não posso aceitar é que se defenda o aborto como método de planeamento familiar. Uma pessoa que engravidou livremente, no exercício pleno da sua liberdade sexual, casada ou não, deve arcar com as consequências dessa sua escolha. Mais, entendo que o Estado tem uma obrigação de defender a vida da criança concebida dessa forma, perante a prepotência da mãe (ou do pai) imprevidente. É assim no plano dos princípios e no plano dos valores. Além do que, actualmente, é claramente esse o interesse da Nação: aumentar a natalidade. E esse é o interesse que o Estado deve proteger. Não o da falsa liberdade de escolha da mãe.
Mais, entendo que o Estado pode e, porventura, deverá promover uma maior consciência das possibilidades de planeamento familiar e dum melhor recurso às técnicas hoje existentes que facilitam esse desiderado. Mas também entendo que essa defesa não pode permitir desculpar o aborto de quem inadvertidamente engravidou: como diz o povo, "quem anda à chuva molha-se". E fica molhado, acrescento, não vai artificial e posteriormente secar-se para fingir que não andou à chuva.
Dito isto, resulta de tudo quanto se afirmou que o problema essencial está em saber o que fazer a quem recorra ao aborto se se considerar que esse comportamento não é criminoso. Creio que o sentimento dominante na sociedade será o de considerar esse comportamento, apesar de tudo, como condenável. Obviamente, em função das circunstâncias concretas de cada mulher e da consciência que tenha da ilicitude do acto que praticou. Isso implica, desde logo, que a atitude do médico ou parteira que participe na realização de um aborto não admitido pela lei é claramente um acto ilegal e, na minha opinião, um crime. Logo, censurável e punível. Do mesmo modo, creio que a atitude leviana de uma mulher que podendo não se precaveu, nem rectificou o seu comportamento a tempo, e depois recorreu ao aborto por comodismo, calculismo ou simples capricho é censurável e por isso punível. Admito que talvez não com pena de prisão, mas seguramente com uma pena adequada à situação económica e social da abortante e possivelmente com obrigação de prestar dias ou mesmo meses de reparação social.
Finalmente, uma perspectiva cristã. Creio que o aborto é um pecado, essencialmente de egoísmo, mas igualmente um atentado contra uma vida em formação. Creio por isso mesmo que não deve ser praticado. Mas também creio que o dever de um cristão não é o de impor as suas convições aos outros com recurso à força, seja ela a do Estado ou não. O seu dever é o de apostolado. É o dever de promover uma consciência social que censure adequadamente a consideração leviana da vida. E isso é um dever anterior e posterior a qualquer referendo.
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