quinta-feira, setembro 28, 2006

A Cruz e a espada

O que a seguir escrevo, foi algo que me questionei se o deveria fazer. Não por qualquer razão de princípio, mas, simplesmente, porque se entra no campo do “no ones land”. E a inteligibilidade pode não ser possível por uma única razão: a linguagem. Contudo, farei um esforço.
Pois bem, não pretendo rechaçar o acutilante post do Ernesto (embora coloque no mesmo saco acontecimentos de índole diversa), nem ouso peneirar a verdade de factos históricos. Todavia, não posso deixar de achar curioso o ponto de vista partilhado por tantos, acerca dos telhados de vidro da Igreja Católica, ou, mais amplamente, do Cristianismo. Por exemplo, e diga-se, paradigmático, é o artigo publicado no último Expresso, de Miguel Sousa Tavares. Aí usa-se e abusa-se do argumentário clássico usado pela mentalidade que se arroga puramente Voltairiana. E, se por um lado considera que essa postura lhe concede uma superioridade moral, por outro lado rebela-se contra a sua própria génese.
Têm sido muitas as opiniões dadas à estampa, sempre no sentido de nomear o rosário das inenarráveis desventuras da Igreja. Desde logo, o primeiro vício destas posturas, é uma acrimoniosa autocrítica, uma violenta oposição aos pilares da cultura ocidental. Esquecendo-se que a escrita que reflecte o seu pensamento, é o exemplo acabado de uma profunda noção de liberdade individual e auto-responsabilidade. Isto é: pressupõe o mais alto respeito pela dignidade da pessoa humana. E tal valor é, nada mais, nada menos, do que uma das expressões do Cristianismo.
De mãos dadas com a hipertrofia da auto consciência crítica, anda o bem pensante e omnipresente rol dos períodos negros da história da Igreja: Inquisição, Cruzadas, etc. O costume!!! Uma mácula, sem dúvida, com que se pretende fazer inquinar toda e qualquer postura que um cristão adopte. Note-se até que, fruto deste bombardeamento constante, dentro da hierarquia da Igreja, é tão presente esta “culpa”, que hoje se pode ler isto : “Nós não podemos ter receio de dizer que é mau espalhar a fé com a espada, até porque sabemos muito bem do que estamos a falar. A Igreja Católica também já cometeu esse erro, mas corrigiu-se, arrepiou caminho e até já pediu perdão [João Paulo II] pelos excessos cometidos na Idade Média e na Inquisição” D. Carlos Azevedo.
Falemos, então, da clara distinção que é necessário fazer quanto a esta espada.
Desde sempre a cidade dos homens não esteve ligada à cidade de Deus. Na Bíblia não encontramos referências à Jihad, à guerra santa, nem a um proselitismo baseado no Califado. Mas se dúvidas existem os factos falam por si: aquando da morte de Maomé, ano 632, pouco depois de entrar com o seu exército em Meca, o Islão estava confinado à Península Arábica. Passado 100 anos, em 732, dá-se a grande e mítica batalha da Cristandade contra o Islão: Poitiers. Repito, em 100 anos, os exércitos dos Califas tinham pulverizado o Império Persa, dizimado toda e qualquer resistência hispânica. E foi Carlos Martel, pois, quem travou o ímpeto da dinastia Omíada.
O que demonstra que a difusão da fé se fez de cima para baixo. Com a concupiscente promiscuidade entre o poder temporal e espiritual. Ou seja, desde o início que o Islão se caracterizou por ser uma teocracia. Porque, para o Islão, (salvo raras excepções) não houve nem há separação entre Estado e Igreja. Não há laicidade. A sharia foi sempre encarada como a lei civil.
Neste sentido, o proselitismo islâmico, não foi feito por apóstolos nem pastores, mas por exércitos. Goste-se ou não. Comparar a génese do Cristianismo, e os cerca de 400 anos de perseguições de que foi objecto, com o nanoperíodo cda vida de Maomé em que o mesmo foi perseguido, é uma hipérbole de contornos cósmicos. E cómicos!!!
E para que dúvidas não se suscitem, e se ergam já vozes a arremessar com as conversões cristãs de Constantino, tal facto nada tem a ver com o surgimento do Cristianismo. Constantino limita-se a uma leitura ditada pela realpolitik. A conversão do Império Romano foi a constatação da força do Cristianismo dentro de portas.
Por outro lado, a mensagem cristã não se prende com realizações históricas. Hoje como ontem, parte-se do preconceito da realização de um reino terreno onde se cumpram os ideais cristãos, ex: Sacro Império Romano Germânico. O Evangelho diz dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Aliás, das três religiões abraamicas, só o Cristianismo preconiza um projecto exclusivamente espiritual (evidentemente, com implicações no campo ético e moral). Os próprios Judeus, ainda esperam o seu Messias, o seu Salvador, um novo Rei David. Preconizam um reino na Terra, dominado por um senhor dos exércitos. Cristo, na sua morte, entrega-se a César, e é julgado pelo povo Judeu. Morre enquanto a água escorre nas mãos de Pilatos. Cristo não tem armas.
Mas nem por isso, deixa de ser subversivo, estando, justamente, no pico da escala criminológica, ao propor uma alteração radical do próprio sistema de valores vigente. Vinte e um séculos volvidos, ainda não é percebido...!
É curioso notar (como já o fez o meu amigo Paulo Rangel, num artigo publicado há já algum tempo sobre o Processo de Inês de Castro) o percurso, algo paralelo, de Cristo e de Sócrates. Diria, agora, invocando as palavras de Bento XVI, que se com Cristo vemos o exemplo vivo da Fé, em Sócrates (Grécia) encontramos o paradigma da mais recta Razão, do logos. Um como outro foram coerentes na sua vida, desafiaram, com o vigor da sua palavra, o poder estabelecido e, por isso, foram condenados à morte. Que não temeram. Aliás, foi ela o penhor do seu testemunho.
O que os arautos da razão pura - os defensores da Constituição Europeia sem tributos à cultura cristã que os inspira - fazem, é limitarem-se a olhar para o lado lunar da Igreja. Valorizar, única e exclusivamente, a faceta da concretização temporal da instituição humana. E julgar, com recurso exclusivo aos jurados da História.
Não pretendo, pois, peneirar qualquer verdade histórica. Proponho-me sublinhar a verdadeira substância, a alma mater da Cristandade. A visão, alegadamente, asséptica que percorre muitas das opiniões publicadas olvida a verdadeira mensagem, a exigente proposta que nos foi lançada há mais de dois mil anos. E se muitos o fazem por ignorância, outros cavam as suas palavras no quintal da sua má vontade.

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