sexta-feira, novembro 11, 2011

A propósito do Congresso da Advocacia Portuguesa

O justo é um guia para o seu próximo
Provérbios 12:26

1. O tema do Congresso convocado pela Ordem dos Advogados, não poderia ser mais oportuno - A Reforma da Justiça. Há alguns aspectos, de princípio, que, penso, não deveriam ficar por debater.


2. No dealbar do séc. XXI, há um novo quadro de paradigmas que conforma a Justiça enquanto Princípio e enquanto Instituição. As comunidades jurídicas esforçam-se por se adaptar à voracidade dos constantes desafios, tentando reajustar-se o papel novo que a Advocacia deverá desempenhar na infra-estrutura, que é o aparelho da Justiça, relativamente à macroestrutura que é a sociedade hodierna.
Este movimento reformista – a nível internacional - insere-se no debate sobre as funções do próprio Estado que, enquanto forma de organização de comunidades políticas, tem vindo a ser desafiado. Há uma pulverização dos centros de poder e de decisão, pela incapacidade da comunidade política clássica -vinda desde Maquiavel- postular respostas aos novos problemas.
O diálogo entre os poderes Legislativo, Executivo e Judicial alterou-se, havendo uma clara judicialização do fenómeno político e uma politização do universo jurídico-institucional. A Justiça, enquanto parte desse tridente forjado no Espírito das Leis, tem vindo a ser convocada a novos papéis. Há, pois, uma bicefalia nesta crise da Justiça: como braço da autoridade do Estado (ele próprio questionado), e enquanto sistema funcional de resolução de litígios.
É pungente uma solução na relegitimação da Justiça enquanto Poder e enquanto Instituição. E é aqui que os Advogados são convocados a cumprirem a missão de criadores, insupríveis, do novo desenho de um sistema que dá sinais de colapso.
3. O sistema judicial português está anquilosado e refém de um modelo talhado para uma Justiça de outro tempo e outro tempo de Justiça. O mapa judiciário mantém-se, praticamente, inalterado desde o reinado de D. Maria II. O último ímpeto de reforma ocorreu nos anos trinta do século passado e, desde aí, não houve uma única alteração substancial. Houve sim, miríades de intervenções avulsas, que se revelaram verdadeiros placebos quando não venenos, como é penhor a reforma da Acção Executiva. Por outro lado, a impetuosidade legiferante do legislador testemunha a inexistência de um suporte estrutural sistémico adaptado às novas circunstâncias. Sendo o exemplo paradigmático da crise, a morosidade da Justiça. Esse sim o problema central do sistema e que toca de forma indelével a vida do cidadão comum.
Ora, a tudo isto a resposta do sistema judicial tem sido ineficaz, por inoperante. Desde logo porque as magistraturas e a Ordem dos Advogados -cujos figurinos permaneceram, praticamente, inalterados desde o Estado Novo, e tributários do modelo judiciário bonapartista- fecharam-se, não se repensando.
A resposta do sistema foi básica: aumentar o número de magistrados, de advogados, de Tribunais, demonstrando-se, estatisticamente (vide www.pordata.pt) que tal correspondeu a uma perda de celeridade processual (diminuição da taxa de eficácia dos Tribunais e aumento da taxa de congestão processual) e à degenerescência da qualidade da Justiça.
Haverá pois que repensar todo o sistema, sem pré-conceitos, com um espírito puro, como o de Sophia, num dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio e livres habitamos a substância do tempo.
4.A Advocacia – tal como o seu próprio radical – é pois, (ad vocare) chamada a desempenhar um papel angular neste repensar do sistema judicial, tornando-o apto à concretização dos Direitos Fundamentais da pessoa humana.
Porque a crise da Justiça é a crise dos seus agentes. E a reforma da Advocacia terá de ser integrada no âmbito das alterações às profissões forenses. Será todo um corpo que se soerguerá. Um tronco comum em que Juízes, Procuradores e Advogados, se relegitimam, aos olhos da comunidade, como faces de um rosto tripartido: uns restaurando a sua autoridade, outros o seu prestígio. O caminho terá, sempre, que passar pela “legitimação funcional” do múnus de cada uma das profissões forenses.
É um facto que o ponto de acesso ao sistema judicial radica nos Advogados que são, em número, o maior corpo dos operadores da Justiça. Donde, a forma como trabalham determina a forma como o próprio sistema funciona. Ora, e silogísticamente, os Advogados serão a pedra angular de um sistema judicial no séc. XXI. Daí a sua reforma determinar a das magistraturas. Premissa esta que obriga a Advocacia a ser inconformista, desafiando o status quo, mostrando-se proactiva nas escolhas programáticas que acolher.
Convirá, pois, afastar o labéu de que os Advogados são um antolho ou estorvo ao sistema, facto tantas vezes veiculado em surdina – nos corredores “surdos” dos Tribunais. Por parte da comunidade em geral e dos outros operadores judiciários, em particular, criou-se uma hostilidade, uma desconsideração pelo seu papel (insubstituível). O que é coadjuvado pela circunstância de, nós portugueses, sermos um povo à sombra do Estado - cerca de quatro milhões de cidadãos dele dependem - que dá mais importância aos cargos ligados ao Estado (visto como seguros) do que à prática liberal e privada, vista com desconfiança.
A Advocacia tem que fazer um esforço, sério, na sua formação e reciclagem, ao longo de todo o percurso profissional. A raison d’être, enquanto profissionais liberais, será a qualidade. Para tanto, a Ordem dos Advogados deverá ter uma palavra dentro das Escolas/Faculdades de Direito – veja-se o exemplo da Reforma do Sistema Judicial no Japão, que teve como pedra angular uma verdadeira revolução coperniciana, na forma como os advogados passaram a ser encarados. Donde, os cursos de Direito devem estar ligados ao foro, tal como a vulgata de as Universidades estarem ligadas às empresas. As teorias abstractas (essenciais, de resto) têm que ter concretizações reais. Dever-se-á fomentar a busca de soluções inspiradas pelo sentido de Justiça do bonus pater familias, em vez de serem um corolário de postulados hermenêuticos, necessariamente, densos e herméticos. Haverá que deixar cair preconceitos e romper, cum granu salis, com o Direito Continental abrindo as portas à tradição Anglo-saxónica, mais dúctil, versátil, e que respira melhor o ar dos tempos. A sociedade reivindica uma cidadania activa que necessita de um Direito que de forma simples (não simplista) seja mais facilmente apreensível.
Nos Tribunais desafie-se o princípio da recondução ao julgador de todo o protagonismo do processo judicial, rompendo-se com a tradição jacobina do direito Francês. O Advogado procurará uma posição pró activa no desenlace da lide. Todo o empenho será empregue no sublinhar dos princípios do dispositivo e da auto-responsabilização das partes. Pelo que esta jurisvidência pressupõe uma formação científica sólida e consistente.
Numa palavra, denota-se que o vector essencial da Reforma deveria passar por evidenciar o mérito.
E essa terá que ser a fonte inspiradora aonde deverá beber, também, a inadiável reforma das Magistraturas – porque, permita-se, aí a antiguidade ainda é um posto. E na articulação entre os profissionais do foro, impõe-se que os Tribunais superiores se abram e acolham esse valor. Razão pela qual todo o jurista de reconhecido mérito, seja advogado, académico ou procurador, poderá ter acesso à judicatura. A mensagem é clara: o rompimento com o corporativismo e o acolhimento da meritocracia como pressuposto de evolução nas carreiras judiciais.
O escopo da Reforma não poderá ser um serôdio interesse dos Advogados, mas antes o da Sociedade como um todo. E a autoridade da Reforma residirá no serviço aos cidadãos, não ao próprio sistema. Esta é a grande responsabilidade social da Advocacia portuguesa, enquanto profissão liberal, independente, de interesse e de serviço público, no início do novo milénio.

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