sexta-feira, julho 29, 2011

Na margem, de pé


Quando o fecharam naquele cubículo, sentou-se no chão, encostado à parede, a fixar a porta como que hipnotizado. Sentia uma opressão no peito, mas ao mesmo tempo aliviava-o a certeza de que a partir de agora outros decidiriam o seu futuro e a sua vida.

Havia de espreitar por aquele postigo estreito por onde entrava a luz da tarde, mas para já apenas o observava enquanto sentia o frio do cimento picar-lhe as nádegas. Havia de experimentar o colchão, mas mais tarde, depois de adivinhar cada mancha de ferrugem nos gonzos e trincos da porta. Deve aprender-se devagar o que é uma cela de esquadra, até porque não há razões para ter pressa.

Tinha seguramente tombado ao mais baixo patamar da escala social, ao ponto mais negro da reprovação pública. Pensava que traíra afinal as esperanças do pai, as expectativas das senhoras, o discurso do reitor, a amizade de alguns colegas, a memória da mãe e os esforços da catequista. Iria para o inferno e, como os olhos não ficam em cinzas, havia de ver os dedos acusadores de todos eles apontados para si.

Mas aquilo não era o inferno, pelo contrário: a humidade já a sentia nas costas e nas pernas. Antes do inferno, ainda poderia espreitar pelo postigo e estender-se no colchão. Tinha tempo e sabia que atrás deste mais tempo viria. Apercebendo-se de que já mais nada podia piorar, deixou de se preocupar. Levantou-se lentamente, com a leveza de uma alma esvaziada e a experimentar pela primeira vez a sensação de abandono e de ligeireza de quem já não tem mais nada a perder e de que, portanto, se é definitivamente dono de si próprio, bem conhecida do jogador que perde tudo e regressa a casa a deitar-se, cansado e arruinado mas sereníssimo.

Foi assim um homem livre que espreitou a horta para onde dava o postigo, que bebeu da torneira do canto um gole de água a saciar uma sede sem angústia, que se estendeu num colchão poeirento, a dormir um sono tranquilo. Saíra da corrente, estava na margem e estava de pé.

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3 comentários:

  1. e o resto? abres o apetite e agora queremos mais

    El Nando

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  2. Fiquei prisioneiro deste princípio de história...

    JAC

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