Este verão 2666 fez parte da minha bagagem de férias. Já andava há algum tempo pelos pendentes da sala, onde surgira no sapatinho do último natal, mas o marcador de páginas ainda não chegara sequer ao final da sua parte primeira, pois sempre outros (naturalmente mais pequenos) se lhe sobrepunham. No momento da partida olhou-me suplicante e lá o deixei saltar para o meu saco de viagem, onde se juntou a um outro de Adriano Moreira que já ali se tinha acomodado. Na curta (e refrescante) paragem pelos Pirinéus pus o marcador a trabalhar, que não só saltou rapidamente para o final da primeira das suas cinco partes como ainda foi entrando na segunda.
Indiferente aos apelos do nosso PR, continuei as minhas férias cá fora instalando-me de seguida na Côte D’Azur onde à tarde, depois da praia, me deleitava no jardim tipicamente provençal da casinha na encosta e com soberbas vistas sobre a baía, a folhear toda aquela montanha de páginas, fazendo apenas alguns pequenos intervalos para me refrescar, ora na piscina, ora com uma cervejinha. Ao cabo de seis tardes, e a uma média de cerca de cem páginas por tarde, o marcador atingiu a contracapa e foi descansar, agora abrigado dos mosquitos do anoitecer.
Tal como BLX, havia conseguido chegar ao final do livro, mas, ao contrário de BLX, não fiquei com a sensação de a obra perder sentido se não for lida até ao fim (ou se o for apenas numa ou em algumas das suas cinco partes), pela simples razão de o enredo que lhe justifica a epígrafe de Romance não ter propriamente um fim. Simplesmente acaba, como se de repente a bateria do portátil de Roberto Bolaño tivesse ficado descarregada e não houvesse por perto tomada onde a recarregar antes da chegada do empregado da Quetzal que o vinha recolher. Também como BLX, não terei ficado devoto de Bolaño, isto apesar de igualmente não ter dado por mal empregue o tempo que lhe dediquei. Antes pelo contrário. Reconheço mesmo que este escritor latino-americano, alinhadamente desalinhado, goste-se ou não, ficará na história na literatura contemporânea. Nem que só daqui a 656 anos se possa comprová-lo...
Não sei que polémica vai por aí sobre Bolaño. Tão pouco me preocupa. Na verdade, estas férias decidi não ler jornais, não ver tv, não ouvir rádio, não aceder à internet. Por outras palavras, decidi dar também algum descanso ao meu direito à indignação, que, justiça seja feita, este estado socratino me tem garantido a um nível de excelência. A única ligação que me permiti deixar aberta ao mundo foi a do meu telemóvel. Não obstante, pela simples observação do sol tinha a certeza que ele continuava a girar. Nestas duas semanas apenas me chegou um sms do Algarve, dizendo-me que a água estava como sopa, outro do Minho, informando-me que a água estava gelada, e outro curiosamente da Áustria, dando-me conta de o FCP ter ganho mais uma supertaça no futebol nacional. Ao atravessar depois a Suíça, notei ainda que uma rádio de língua alemã mencionara por duas vezes a palavra Portugal, tendo-me a minha mulher esclarecido que falavam de fogos e da detenção de 14 presumíveis incendiários. Perguntei-lhe se algum dos detidos se chamava Rui Pereira. Nenhum nome havia sido mencionado, disse-me ela.
No caminho, 2666 voltou à minha mente e entretive-me então a imaginar Roberto Bolaño a pegar numa grande caixa de cartão onde guardava todas as fichas que fora anotando ao longo da sua vida, contendo múltiplos pensamentos seus, registos e críticas das leituras que devorou, observações dos locais por onde vagabundeou, dos meios literários que frequentou, de gente que conheceu e do mais que experimentou, tudo despejando à toa sobre uma grande mesa.
Depois foi agrupando aquelas fichas como quem faz um puzle, começando por colocar uma linha a meio da mesa, qual fio condutor donde partiam inúmeras ramificações para ambos os lados, umas como pequenos galhos de árvore, outras como grandes cachos de uvas, em cujas pontas, ou bagos, ia encaixando as suas fichas à medida que inventava personagens a quem atribuir as observações, pensamentos ou ambientes de cada uma delas. Como a mesa fosse exígua para tanta ficha, quebrou aquela espinha dorsal em quatro pontos, do que resultaram cinco partes que dispôs paralela e obliquamente de modo a conseguir um pouco mais de espaço para ordenar as todas as fichas numa mesa que já não admitia mais tábuas. No final, em vez de um romance tinha cinco e agora era só dar-lhes forma final. Mas já não viveu para tanto e quem depois lha deu olhou para aquele emaranhado de fichas numa única mesa e entendeu ser antes de formatá-las também num só livro. No chão ficara ainda caída uma ficha que mencionava um gelado de três sabores. Sem saber donde caíra, atiraram-na para o fim da linha.
Entretanto em Munique, onde agora já me refresco à chuva, voltei a “conectar-me” ao mundo, assim recomeçando também a alimentar o meu direito à indignação. Com relatos de fogos e de festas no Pontão. Mas não com a nova derrota do SLB...
Indiferente aos apelos do nosso PR, continuei as minhas férias cá fora instalando-me de seguida na Côte D’Azur onde à tarde, depois da praia, me deleitava no jardim tipicamente provençal da casinha na encosta e com soberbas vistas sobre a baía, a folhear toda aquela montanha de páginas, fazendo apenas alguns pequenos intervalos para me refrescar, ora na piscina, ora com uma cervejinha. Ao cabo de seis tardes, e a uma média de cerca de cem páginas por tarde, o marcador atingiu a contracapa e foi descansar, agora abrigado dos mosquitos do anoitecer.
Tal como BLX, havia conseguido chegar ao final do livro, mas, ao contrário de BLX, não fiquei com a sensação de a obra perder sentido se não for lida até ao fim (ou se o for apenas numa ou em algumas das suas cinco partes), pela simples razão de o enredo que lhe justifica a epígrafe de Romance não ter propriamente um fim. Simplesmente acaba, como se de repente a bateria do portátil de Roberto Bolaño tivesse ficado descarregada e não houvesse por perto tomada onde a recarregar antes da chegada do empregado da Quetzal que o vinha recolher. Também como BLX, não terei ficado devoto de Bolaño, isto apesar de igualmente não ter dado por mal empregue o tempo que lhe dediquei. Antes pelo contrário. Reconheço mesmo que este escritor latino-americano, alinhadamente desalinhado, goste-se ou não, ficará na história na literatura contemporânea. Nem que só daqui a 656 anos se possa comprová-lo...
Não sei que polémica vai por aí sobre Bolaño. Tão pouco me preocupa. Na verdade, estas férias decidi não ler jornais, não ver tv, não ouvir rádio, não aceder à internet. Por outras palavras, decidi dar também algum descanso ao meu direito à indignação, que, justiça seja feita, este estado socratino me tem garantido a um nível de excelência. A única ligação que me permiti deixar aberta ao mundo foi a do meu telemóvel. Não obstante, pela simples observação do sol tinha a certeza que ele continuava a girar. Nestas duas semanas apenas me chegou um sms do Algarve, dizendo-me que a água estava como sopa, outro do Minho, informando-me que a água estava gelada, e outro curiosamente da Áustria, dando-me conta de o FCP ter ganho mais uma supertaça no futebol nacional. Ao atravessar depois a Suíça, notei ainda que uma rádio de língua alemã mencionara por duas vezes a palavra Portugal, tendo-me a minha mulher esclarecido que falavam de fogos e da detenção de 14 presumíveis incendiários. Perguntei-lhe se algum dos detidos se chamava Rui Pereira. Nenhum nome havia sido mencionado, disse-me ela.
No caminho, 2666 voltou à minha mente e entretive-me então a imaginar Roberto Bolaño a pegar numa grande caixa de cartão onde guardava todas as fichas que fora anotando ao longo da sua vida, contendo múltiplos pensamentos seus, registos e críticas das leituras que devorou, observações dos locais por onde vagabundeou, dos meios literários que frequentou, de gente que conheceu e do mais que experimentou, tudo despejando à toa sobre uma grande mesa.
Depois foi agrupando aquelas fichas como quem faz um puzle, começando por colocar uma linha a meio da mesa, qual fio condutor donde partiam inúmeras ramificações para ambos os lados, umas como pequenos galhos de árvore, outras como grandes cachos de uvas, em cujas pontas, ou bagos, ia encaixando as suas fichas à medida que inventava personagens a quem atribuir as observações, pensamentos ou ambientes de cada uma delas. Como a mesa fosse exígua para tanta ficha, quebrou aquela espinha dorsal em quatro pontos, do que resultaram cinco partes que dispôs paralela e obliquamente de modo a conseguir um pouco mais de espaço para ordenar as todas as fichas numa mesa que já não admitia mais tábuas. No final, em vez de um romance tinha cinco e agora era só dar-lhes forma final. Mas já não viveu para tanto e quem depois lha deu olhou para aquele emaranhado de fichas numa única mesa e entendeu ser antes de formatá-las também num só livro. No chão ficara ainda caída uma ficha que mencionava um gelado de três sabores. Sem saber donde caíra, atiraram-na para o fim da linha.
Entretanto em Munique, onde agora já me refresco à chuva, voltei a “conectar-me” ao mundo, assim recomeçando também a alimentar o meu direito à indignação. Com relatos de fogos e de festas no Pontão. Mas não com a nova derrota do SLB...
Se isso de te desconectares te provoca estas prosas, deita o cabo fora e delicia-nos. E não voltes, pois esses ares fazem-te bem. Um grande abraço
ResponderEliminarCaro Francisco Rangel
ResponderEliminarEu aproveitei as férias para ler as reflexões de um grande Juiz inglês, Lord Radcliffe.
É estranho que os Juízes portugueses nunca publiquem as suas reflexões. As sentenças portuguesas também não abundam em reflexões.
Não é o caso noutros países em que, não só as sentenças revelam os caminhos do pensamento subjacente como os próprios juízes tornam muitas vezes públicas as suas reflexões.
É muito interessante ler, por exemplo, as reflexões de Lord Atkin, Lord Denning ou Lord Radcliffe, em Inglaterra.
Uma das reflexões de Lord Radcliffe, que me interessou (porque penso que talvez tenha alguma coisa a ver com a situação da Justiça em Portugal) é esta:
"Eminent Lawyers make arguments abounding with analogies and refined distinctions worthy of perfect masters of logic. But if a question arises as to the postulates on which their whole system rests, these very men often talk the language of savages or of children."
O sistema de Justiça português assenta em que postulados? Quais são as ideias fundamentais que lhe estão subjacentes?
Seria interessante que, um dia, os Juízes e os Procuradores escrevessem alguma coisa a esse respeito, dizendo o que pensam do assunto.
Um abraço.
Pedro Guerra e Andrade
Meu Caro,
ResponderEliminarTambém as sentenças portuguesas contêm a linha de pensamento e as reflexões subjacentes à decisão, embora muitas das vezes se limitem a citar o pensamento e as reflexões de outras decisões ou das publicadas por professores e advogados, tarefa que infelizmente hoje o "copy/paste" permite fazer até à exaustão...
Porém, o facto de não ser comum os nossos juizes publicarem as suas reflexões, penso que terá mais a ver com o sistema do direito português, que bebe mais no direito romano e germânico, e não no anglo-saxónico que, não regulando a vida tanto em pormenor, deixa naturalmente esta tarefa aos juizes.
Já a reflexão de Lord Radcliffe (que a minha cabeça identificava antes como advogado) que aqui cita me parece mais dirigida à qualidade dos intervenientes no sistema judicial e, neste sentido, também poderá ter algo a ver com a situação da justiça. Mas não me parece que seja este o nosso prinicipal problena.
Um abraço,
FRF