Já aqui defendi o referendo ao Tratado de Lisboa. Não mudei de opinião. Mas tenho de confessar que me irrita a forma como Pacheco Pereira defende a realização de um referendo. Porque assenta em diversas falácias que importa discutir.
Primeiro. É evidente que a decisão, aparentemente colectiva, dos 27 primeiros-ministros e demais acólitos, de não referendar este tratado é má para a Europa e é péssima para a aceitação pelos europeus do processo de integração europeia. Mas também não deixa de ser verdade que, no actual estádio, é muito ingrato lograr um acordo sobre um tratado para depois o ver negado porque um ou dois países optam pelo não em referendo. É evidente que esta questão necessita de uma resposta e essa, infelizmente, não pode vir por referendo. Curiosamente, o novo tratado prevê soluções futuras para essa questão...
Segundo. O tratado não é o ideal, tem até várias medidas duvidosas e que podem vir a criar novos problemas - a mais emblemática das quais é a criação de um presidente do Conselho Europeu. Nasceu mal, cresceu mal e é uma ideia perigosa duma certa concepção da Europa das Nações que não evitará a inevitabilidade de se avançar mais ou morrer; pode é criar ainda mais confusão pelo caminho.
Mas é completamente ridículo pensar que haveria formas de fazer melhores tratados, no actual estádio. Mesmo a eventualidade do Parlamento Europeu assumir "poderes constituíntes" não garante que o resultado seria melhor, nem muito menos que os Povos o aceitariam.
Terceiro. A perda de poder de Portugal e a suficiência dos mecanismos actuais. Eu estudei o assunto, tive possibilidade de comunicar as minhas conclusões oportunamente a quem estava em posição de influenciar os decisores, e estou convicto que a perda de poder é o menor dos problemas. Desde logo porque o poder actual já não era muito, depois porque todos perdem poder, não são apenas alguns. Aliás, para mim, é aí que está a principal vantagem do tratado de Lisboa. Já cá volto.
Pelas mesmas razões, não creio que os mecanismos actuais sejam suficientes. Há demasiados estados-membros e demasiadas matérias a decidir por unanimidade para que os actuais mecanismos sejam suficientes. O tratado, claramente, apresenta soluções que não sendo ideais são seguramente um avanço.
Nesta matéria o tratado introduz porventura a sua maior inovação, embora a prazo, e a que mais beneficiará a Europa. Trata-de da alteração do mecanismo decisório do Conselho, nas votações por maioria. A solução proposta assenta numa dupla maioria: de Estados (actualmente 15), o que claramente beneficia os estados de menor população; e de populações, o que claramente compensa os estados de maior população. É discutível, mas também é razoável.
Porém, a verdadeira alteração que este procedimento introduz é a da dinâmica decisória. Até agora foi sempre mais fácil construir as minorias de bloqueio do que trabalhar para a maioria. Essa é uma dinâmica negativa que atrasa o processo e prejudica a qualidade e celeridade das decisões.
No novo mecanismo, a dinâmica passará a ser positiva, isto é, a da construção das maiorias de apoio às propostas da Comissão (enquanto esta detiver o exclusivo da iniciativa, isso é da maior importância). Obviamente, os grandes aparentemente ganham mais nessa nova dinâmica, visto que são, para já, apenas seis e sem o apoio de pelo menos três deles, não haverá iniciativas ganhadoras.
Mas repare-se bem. É aparente, porque bastam três grandes... o que quer dizer que os outros três podem ficar de fora do barco! Além disso, a maioria não se esgota nesses três grandes. Eles precisarão sempre de mais doze (12) estados para chegarem à maioria. E doze que permitam representar a população suficiente, o que claramente beneficia os estados de média dimensão populacional.
Por conseguinte, será muito mais fácil aprovar decisões. Essa é que é a verdadeira grande alteração. E é também a principal razão porque apoio este tratado. O resto é pouco mais do que folclore, sobretudo no que respeita à política externa.
Também por esta mesma razão sou a favor de um referendo. Foi prometido, é devido. E as alterações são suficientemente importantes para o justificar. Mas devia ter consequências para quem o faz, apenas, e não para a Europa.
O que não se justifica é pensar que um "não" português faria parar a Europa. Acaso alguém se ilude que se tivesse sido um outro país que não a França a votar não, alguém se ilude que a solução teria sido outra? Nem mesmo o cinismo de Pacheco Pereira nos convence, neste aspecto pelo menos. O peso dos grandes não vem do tratado. Vem da natureza das coisas...
A todos os pacientes leitores, peço desculpa pela dimensão da posta. Creio que o assunto o justifica.
ResponderEliminarO Ventanias anda deslumbrado com a eficácia decisional do método comunitário: o importante seria que as coisas se decidissem rapidamente e sem entraves. Não tem uma palavra para a substância das ditas decisões nem para questionar os meios disponíveis para que os que não têm o "peso dos grandes" se defendam destes. O Tratado confirma um directório na Europa do qual ficamos completamente arredados mas o Ventanias anda de bandeira branca, rendido à evidência dos grandes e maravilhado com a eficácia com que nos governarão. Foi você que alegou cinismo?
ResponderEliminarVou muito no sentido do comentário do Douro.
ResponderEliminarAcho até preocupante a fuga consciente à discussão que um referendo promove quando os apologistas do tratado são os primeiros a reconhecer que o tratado "Nasceu mal, cresceu mal e é uma ideia perigosa duma certa concepção da Europa das Nações" e que só não fazem o referendo porque "é muito ingrato lograr um acordo sobre um tratado para depois o ver negado porque um ou dois países optam pelo não em referendo". Ou seja, os defendores do tratado só não fazem um referendo porque não têm a certeza à partida de o ganhar... Isto sim, é espírito de democrata.
Peço desculpa, caro AFM, mas as críticas que me apontam são injustas ou deslocadas.
ResponderEliminarPrimeira, a citação que faz é dirigida à figura do futuro presidente do Conselho. A segunda, refere-se de facto às razões porque os primeiro-ministros europeus terão, note que ponho no condicional porque não sei o que se terá passado, decidido não realizar referenddos.
Posso concordar ou discordar dessa razão dos primeiro-ministros, mas compreendo-a e até a acho razoável. Na verdade, na lógica dos princípios, bastaria que um único país não ratificasse o tratado para este poder não entrar em vigor. Numa situação dessas, como se verificou no passado com os não francês e holandês, o resultado é muito frustrante para os restantes 26 países - como se verificou no passado em relação à Espanha e ao Luxemburgo, países que referendaram positivamente a Constituição e agora se vêem "forçados" a aceitar um tratado mais complicado e menos legível que, ainda por cima, não é uma constituição.
Teoricamente, haveria duas soluções possíveis para responder à questão com que termina o seu comentário (tanto quanto eu vejo): ou um referendo europeu, realizado nos 27 países e com o resultado a contar por um todo, independentemente dos resultados parcelares nacionais; ou referendos nacionais que implicassem a saída da União dos países que votassem não.
Como saberá, eu defendi esta última possibilidade para um referendo que gostaria se viesse a realizar em Portugal.
Meu caro Douro,
ResponderEliminarEu percebi já há vários anos que o futuro de Portugal dependia em larga medida do processo de construção europeia. E aceito-o, sem pejos e empenhadamente.
Acredito que a Europa é a melhor solução para o continente, num mundo de globalização crescente e de insegurança aumentada; acredito que a integração europeia é decisiva para a modernização das nossas economias e empresas e para assegurar a defesa de alguns aspectos do "modelo social europeu" que, numa perspectiva cristã, me parecem desejáveis e decisivos para a construção de uma sociedade mais harmoniosa; acredito também que esta solução é a melhor das possíveis para enquadrar devidamente a relação de Portugal com Espanha; acredito que a participação na União nos permite potenciar a defesa de alguns interesses que mantemos em diversos cantos do globo; finalmente, acredito que a Paz continental é um valor que deve ser carinhosamente apoiado e nunca assumido por garantido, pelo menos não enquanto houver gente que acredita que é possível encontrar respostas nacionais para os problemas que elenquei - note que a França e a Alemanha tem um problema parecido com o de Portugal e Espanha, a Espanha com a França, a Holanda com a Alemanha, a Bélgica com a França, a Inglaterra com o continente, a Irlanda com a Inglaterra, e por aí fora.
Portanto, a minha resposta à sua observação é simples: SIM, claramente sim, é mais importante a eficácia decisória do que a defesa de um virtual interesse nacional - note que não o penso apenas para os outros países mas também para Portugal.
Pelas razões que apontei, o interesse global de Portugal é no sucesso do processo de integração europeia. Isso implica torná-lo inevitável. Quanto a mim, o ideal teria sido o recurso ao federalismo institucional, do tipo do americano ou do alemão. Infelizmente a Europa tem preferido ser criativa, defendendo conceitos abstractos e inócuos como o da Europa das Nações. O resultado são os tratados de Lisboa, que ninguém compreende e que são difíceis de explicar.
Mas lanço-lhe um repto: diga lá uma qualquer área da actuação da União Europeia em que a defesa dos interesses nacionais justifique a defesa da unanimidade - ou seja, para quem não quer ser ingénuo, uma área em que você acredite que Portugal defenderia melhor os seus próprios interesses do que qualquer solução europeia?
E não me venha com a cultura e a língua, que não são competências europeias, nem com a política externa, que também não é uma competência europeia. Em contrapartida, eu afirmo que a defesa deveria rapidamente tornar-se outra competência europeia; o que lhe parece?
Cumprimentos
Caro Ventanias, já temos tido debates neste blog (de resto, o único em que participo), uns mais acesos e outros menos, uns em questões em que concordamos e outros não. Tudo é normal. Porém, nesta questão confesso que estranho a sua posição, pois se por um lado vejo-o a referir-se a si próprio como defensor da realização de um referendo, por outro vejo-o a compreender demasiado bem as circunstâncias da sua não realização. Circunstâncias essas que, quanto a mim, são o que desde logo enquinam todo o processo.
ResponderEliminarPor isso, desculpar-me-á, mas vejo algum défice de coerência naquilo que você diz que gostava de ver ser feito e que, não vendo, compreende que não seja.
Eu não propuz que as decisões comunitárias sejam sempre por unanimidade em todos os domínios, mas o que lhe posso afirmar é que tudo o que diminua a ponderação do voto português no Conselho é altamente nefasto para os nossos interesses no jogo das chamadas minorias de bloqueio. E isso tem acontecido na política comercial comum, na política das pescas, na política do ambiente e na própria política da concorrência. Não é este o lugar para lhe trocar isto por miúdos. Quando diz que prefere a "eficácia" do processo decisional comunitário ao interesse nacional nacional, diz tudo sobre o que é a sua postura. Imagino que agora vai dizer que eu sou um anti-europeu porque nacionalista e avesso à integração. Nada mais errado. Sou a favor de uma Europa integrada mas que seja realista e respeitadora dos povos e considero que, nesta matéria, o Pacheco Pereira, que passou anos em Bruxelas como vice-presidente do Parlamento Europeu, é uma voz autorizada e inteligente que põe o dedo na ferida e nos devia alertar para o que se está a preparar. Registo, enfim, que o Ventanias não diz sequer uma palavra sobre a decisão governamental de fazer uma mera ratificação parlamentar, apesar disso contrariar a posição do seu partido. Interessante.
ResponderEliminarÚltima observação: Portugal foi hoje condenado pelo Tribunal do Luxemburgo ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de 20.000 euros por dia até alterar a famigerada lei sobre a responsabilidade do Estado, a tal que foi vetada pelo Cavaco. Esta brincadeira vai acabar por custar uma pipa de massa ao contribuinte português mas é um governo que tem a boca cheia de Europa e que invoca a responsabilidade para com os seus parceiros europeus que nos mete nestes assados. São uns finórios!
Caro AFM,
ResponderEliminarNão vejo onde está a incoerência. O facto de eu compreender as eventuais razões do primeiro-ministro não me obriga a aceitá-las. Aliás, a ser verdade o que eu penso, ao primeiro-ministro devia desde logo ser criticado o facto de não assumir que há um acordo europeu, porventura não escrito, de não realizar referendos; não por imposição dos grandes, como diz Pacheco Pereira, mas porque assim o entenderam e pelas razões que para isso tenham - as que apontei ou outras...
As razões porque defendo o referendo, já as deixei expostas anteriormente; não pensei necessário reproduzi-las aqui... mas não andam muito longe das que invoca!
Caro Douro,
ResponderEliminarPrecisamente, o que tentei mostrar-lhe foi que não considero "altamente nefasto para o jogo dos nossos interesses", "tudo o que diminua a ponderação do voto português". Sobretudo nas áreas que nomeia.
Desde logo, porque vejo com muita dificuldade que o interesse nacional nessas áreas seja fundamentalmente diferente do europeu. Por conseguinte, o que eu preciso nessas áreas é de decisões coerentes e eficazmente tomadas, devidamente legitimadas, que permitam cada vez mais a afirmação do verdadeiro mercado único europeu, que é como quem diz o aprofundamento do processo de integração.
Depois, também tentei mostrar-lhe que a questão das minorias de bloqueio vai inevitavelmente perder importância, no novo processo decisório. Como se trata de futurologia, qualquer um pode defender o que bem entender. Eu já disse o que penso. O Pacheco Pereira também. O que lhe posso acrescentar é isto:
a população portuguesa:
representava 2,67% da UE a 15 e 2,22% da UE a 25 e 2,08 da UE a 27;
os votos no conselho de Portugal:
2,80%, Lisboa, 3,68 Nice; ou
2,32, Lisboa e 3,39 em Nice.
Reconheço que, para este último aspecto, as contas são muito complicadas. As que apresento decorrem da aplicação dos indíces de Banzhaf e de Shapley-Shubik.
Mais importante é reconher que as diferenças não são decisivas para se ser contra ou a favor de qualquer das soluções. Muito menos quando considerado todo o pacote institucional. Repare que, na melhor das hipóteses estaríamos a falar de 3,68% e na pior de 2,32; com qualquer delas só muito raramente teríamos peso decisivo...
Para mim, todavia, o aspecto principal é o da alteração da dinâmica negocial, como já deixei escrito. Passa a ser mais importante construir maiorias do que bloquear decisões.
Quanto à decisão do primeiro-ministro de optar pela ratificação parlamentar, pensei que não teria de repetir o óbvio: se defendo a realização de referendo, nas condições que propus, é porque sou contra a ratificação parlamentar - por muito que compreenda as eventuais razões que a possam sustentar...