terça-feira, maio 22, 2007

O caso Charrua na elitolândia portuguesa

Em Portugal há dois pesos e duas medidas. Todos o sabemos, todos o vivemos.

Há um país onde os bons lugares, sobretudo nas administrações públicas e nas empresas delas tributárias, esses lugares são distribuídos por conveniência e consenso (para não dizer conluio) entre os partidos do centrão - e outros que, mais recentemente, também beneficiaram do "sistema". Esse país tem regras próprias, que se fazem cumprir nos corredores, entre conversas e bravatas sobre futebol, quando se deixa cair uma pequena frase lapidar que garante ou impede o acesso de alguns aos lugares que outros cobiçam.

Depois, há o outro país, daqueles que não tem acesso a esses lugares e que nem sabem como se faz para lá chegar. Entre os habitantes deste outro país, há alguns que são verdadeiramente bons profissionais, mesmo nas administrações públicas, e que se esforçam por ser independentes e executar as respectivas funções com o melhor dos seus esforços. Normalmente agem com um certo espírito de carolice, cumprindo com o seu dever e respeitando as respectivas obrigações como se isso compensasse, independentemente de terem verdadeiros benefícios. Por vezes, acabam por ser recompensados, porque a competência é sempre reconhecida. Outras vezes, as mais das vezes, não. Sobre este País não reza a imprensa. Mas é neste país que os "processos" são mais frequentes. Muitas vezes são informais, nunca chegam a disciplinares, limitam-se a uma classificação inferior, ou outra superior dada a alguém mais conveniente, que os impede de progredir, um convite que não chega ou chega tarde demais, um concurso que é ganho pelo sobrinho de alguém ou pelo primo de outrém, etc.

O que os dois países tem em comum é isto: as decisões são centralizadas e quando não são, competem a lacaios que executam em nome desse poder centralizado e desse sistema central de que esperam vir a beneficiar. Frequentemente é nesta segunda dimensão que as coisas acontecem. Evidentemente, visto que aqueles que pensam que podem beneficiar também são filhos de Portugal: a inveja marca-os; a descrença no mérito afoga-os; a convicção nas cunhas tolhe-os. Não terá sido por acaso que os arquivos da PIDE desapareceram: podia dar-se o acaso de lá aparecerem nomes muito sonantes... entre os informadores, que entre os informados conhecemo-los todos.

Depois acontecem os casos Charruas. Saiem a terreiro todos os membros da elite, preocupados com a degração do funcionamento da máquina do Estado, neste caso supostamente por excesso de autoritarismo. Ora, quais são os factos conhecidos deste caso?

Um ex-deputado de um partido do centrão, ocupa um lugar de responsabilidade na máquina de emprego do centrão. Não faltarão candidatos a esse lugar entre os membros do outro lado do centrão, por acaso agora no poder.

O ex-deputado faz comentários pouco elogiosos ao chefe da máquina do centrão, a propósito de dificuldades públicas desse chefe, perante um colega zeloso. A inveja ataca e os comentários tornam-se fonte de oportunidade para potenciais beneficiários do dito lugar... coisa que nem terá passado pela cabeça do zeloso colega!

Um responsável, devidamente bem e oportunamente informado, decide agir. Não porque é esse o seu dever, certamente, mas porque o receio do mérito o impede ou o apreço pelas cunhas o tolhe, naturalmente.

Um tribunal pronuncia-se. Remeto-me ao silêncio quanto aos significados desse facto.

O caso evolui, chega à imprensa. Certamente, com toda a informação relevante, incluindo aquela que terá levado o tribunal a concordar com os fundamentos do processo, naturalmente.

As elites incomodam-se e pronunciam-se. "Aqui d'el rei que a Pátria está a saque! Já não pode um ex-deputado fazer humor no recato do seu gabinete..." Obviamente, as elites nãos e incomodam por acaso. Não, meus senhores, é que está em causa a isenção do estado, que é como quem diz a possibilidade de vivermos em sossego perante esse pai de todos nós que é a máquina do Estado e essa mãe de alguns de nós que são os empregos priveligiados nessa mesma máquina.

Nós, os espectadores, chocamo-nos!!! Então um homem faz uma piada e perde os direitos adquiridos às benesses particulares de que vinha a beneficiar tão exemplarmente!? Não, não pode ser! Certamente num País europeu, moderno e eficiente as coisas serão diferentes do que se passava num país rural, colonial, anti-democrático e ditatorial!

Que pedimos nós? Justiça!!

Isto é, para quem por acaso não conheça a elitolândia: não despeçam o homem por causa da piada; encontrem lá uma falta de zelo, uma qualquer dessintonia com os objectivos superiores da governabilidade e despeçam-no com verdadeiros fundamentos, para a gente poder continuar a sofrer calada.

Façam lá o geitinho de serem discretos como o habitual. A malta não quer ter de se incomodar com coisas tão deselegantes como a da promoção do mérito ou a da organização das estruturas do Estado de maneira a que não sejam sempre os mesmos a tomarem e beneficiarem das decisões...

Irra, que isto até era a semana em que deveríamos festejar o título do Porto ou debater as melhores estratégias para preparar os outros para os próximos títulos... E a Primavera aqui quase a transformar-se em Verão... Bolas!

No Portugal com que eu sonho, as elites, pelo menos uma parte delas, há muito tempo que estariam a incomodar-se com os mecanismos que permitem que isto aconteça. Há muito tempo que teriam percebido que se não se incomodarem com a Educação, não terão um Povo capaz de compreender o que lhe acontece, de se informar sobre o que acontece e de perceber porque é que acontece.

Nesse Portugal que eu acho possível, as elites não se limitariam a dizer mal, depois do jantar, quando os digestivos fluem a débitos reconfortantes, entre amigos, que são as pessoas que conhecemos e apreciam as coisas boas da vida, como nós. Teriam compreendido e lutado para impedir que o sistema educativo fosse mais uma peça do aparelho da distribuição centralizada de lugares. Teriam pedido responsabilidades a professores e entregue responsabilidades aos pais. Teriam exigido avaliações, locais e nacionais. Teriam combatido por fiscalizações. Teriam pedido e obtido qualidade a sério: não 'alegria no trabalho', mas trabalho, com alegria. Mesmo para os estudantes. Mesmo para os nossos filhos.

Naquele Portugal que eu quero opor a este, as elites hão-de assumir as suas responsabilidades, criticar o país do presente com o fito de preparar a Nação do futuro e para o futuro. Nesse País, as elites quererão sobretudo o bem comum. Isto é, para quem não conhece o que pode ser feito e é feito em muitos outros locais: mecanismos e processos em que as instituições não dependem de fidelidades partidárias, são muito menos e menos dependentes do poder central, são muito melhores porque construídas, vocacionadas e dirigidas para o fim para que foram criadas. Com mecanismos autónomos de avaliação do desempenho e transparência na divulgação desses resultados. Sem precisar de ir ao Terreiro do Paço para escolher os dirigentes locais dos serviços regionais...

É preciso mudar muita coisa, reconheço. Mas é possível. Basta lembrarmo-nos de que Portugal não acabará amanhã, nem connosco. E que, no fim, o que deixaremos é a memória de quem fomos e das batalhas que escolhemos travar. Ou não.

É possível um Portugal melhor!

3 comentários:

  1. Está com "geitinho" este post...

    Vou procurar saber que caso é esse da piada do ex-deputado que estou a Leste.

    Um abraço Xico

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  2. Xico, qual Xico!?

    Aqui o Ventanias escolheu um pseudónimo consciente do que estava a fazer... por razões éticas, como já aqui deixei postado!

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  3. Joca, não leves a mal o Xico!

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