quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Do conceito de Vida

Das muitas coisas que se têm escrito nesta campanha referendária, poucas são as novidades e os verdadeiros contributos e impulsos para um progresso na análise desta questão. Sem dúvida, Pacheco Pereira, com o seu artigo Vida e a “Vida”, trouxe um ar novo. A busca do étimo último, do animus essencial, em causa nos conceitos de “Liberdade” por banda do Sim e de “Vida” do lado do Não, é um exercício tanto útil como necessário.
Todavia se as referências que aduz, relativamente à “Liberdade” não chocam, já quanto ao conceito “Vida”, é altamente polémico.
Desde logo, encosta o Não a uma mundividência, cristã, religiosamente comprometida e, como tal, tributária de uma percepção metafísica da Vida. Como refere, a "Vida" enquanto “sopro divino".
Depreende-se, pois, da discordância que aponta ao, alegado, proselitismo que denuncia nestas posições, as quais, considera, defendem valores civilizacionais parcelares e que fazem parte de um todo. Esse, sim, legítimo e que se traduz na convivência das diferentes percepções perante a Vida.
Como, de resto, acaba por referir, semelhante entendimento é de um relativismo poderoso e inaceitável. Desde logo porque tudo o que é humano é cultural e civilizacional. Não podemos sair e fugir a este facto inexorável. A contingência cultural é um fenómeno que o homem pode realizar mas nunca ultrapassar. Olhar-se de fora pode ser um exercício curioso mas nunca completo. Por isso, se o Não é viciado no conceito que proclama, também o será um defensor de uma perspectiva asséptica e denodada da Vida.
Acresce que, bem no oposto, do que aí é referido, não aceito que essa perspectiva laica e jacobina, seja alheia à tradição católica e cristã. Porque desde logo, ela nasce, dentro do caldo cultural europeu. E, por via disso, fatalmente paga tributo à tradição Clássica e Judaico-Cristã. Aliás, o conceito de culpa, de responsabilidade e consciência individual, de relação directa e imediata com Deus, são a génese da valorização da pessoa humana enquanto indivíduo. Daqui ao Liberalismo e ao Romantismo, foi um passo.
Mas há mais. Não creio que seja necessário ser arauto de um conceito de “Vida”, enquanto transcendência, para estar com o Não.
Pelo contrário, a consciência da singularidade da nossa existência, da nossa Razão, da nossa especificidade no Universo ilimitado e até agora conhecido, são razões de sobra para proteger essa centelha, esse quid, essa conjugação irrepetível de átomos e moléculas que redundam num organismo vivo. E sendo, esse organismo, um ser humano, parece-me dispensável discorrer sobre as razões da sua protecção.
Porque, se isto não se aceitar, então, teremos que concordar que seja admissível a defesa da aniquilação da nossa espécie ou do planeta, porque isto tudo não passa dum amontoado, curiosamente ordenado, de protões e neutrões, que no fim de contas produziu uma bizarria no terceiro planeta a contar de uma pequena estrela situada nas faldas de uma galáxia, entre as milhões que povoam esse Universo. Sem dúvida, o firmamento permanecerá imperturbável com o que aqui se passar. Este relativismo nihilista, é inaceitável, como será evidente para qualquer um… P.Pereira incluído.
Donde, a defesa da Vida, da Vida Humana, mesmo no seu início, mais do que legítima deve ser, sempre, curada e cuidada. E não ser desprotegida fazendo-a depender do livre arbítrio de terceiros.
Porquê? Não só por ser “Vida”, mas também porque é Vida.
Mas ainda que se aceitasse que o que estava em causa só era a “Vida”, ainda assim, a sua afirmação e defesa seria legítima.
Ao falar-se em despenalização, em liberalização do Aborto, tal facto redunda numa alteração ao Código Penal. Ou seja, a uma construção jurídico-normativa, ela própria espelho, fruto e exemplo acabado de um produto civilizacional por excelência. Num código regedor das relações humanas com as características específicas de um Código Penal, plasmam-se, quase paradigmaticamente, as concepções morais e éticas de uma sociedade, ou se se quiser, de uma Civilização.
Acaso não seria legítimo que quem se identifique com um quadro de valores não o defenda. Sobretudo num aspecto tão delicado, sensível e último como seja o início biológico da Vida Humana. É que sem ele, não haverá afectos para defender, escolhas, para fazer, culturas para defender...! Parece-me, da mais clara evidência, de que se está a tratar de algo fundacional.
E aqui, reside a maior perplexidade. O efeito conformador e o carácter de exemplo que decorre da lei e da assumpção dos valores morais e éticos que consagra, é suficiente para fazer recear que na peugada desta liberalização, esteja uma banalização de um comportamento que ninguém, no seu perfeito juízo, pode defender ou encarar como aceitável.

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