Mais uma vez aqui volto para tentar explicitar uma ideia simples, mas que nem sempre resulta evidente: não há direitos sociais sem contrapartidas. Há direitos naturais, como o direito à vida, que não são direitos dependentes de qualquer decisão colectiva ou individual - muito embora o seu respeito corresponda a uma opção, o seu exercício não depende desse respeito; esgota-se em si mesmo. A sua violação, essa sim, implica uma acção por parte de alguém.
Já os direitos sociais são completamente diferentes na sua natureza. Não existem sem que alguém tenha de actuar. Não se cumprem em si mesmos, a sua mera existência implica a decisão de os criar. É o caso do direito à educação, que serve aqui de exemplo para todos os outros.
Ninguém nasce com um direito à educação, para além - eventualmente - daquele que resultaria naturalmente da convivência familiar. Que, aliás, não deveria ser menosprezada - e serviria de argumento principal para desmontar um direito novo que a esquerda tem vindo a tentar impor à sociedade e à cultura da nossa época: o direito a ter filhos. Na verdade, só uma visão completamente deturpada da realidade permite conceber a responsabilidade da decisão de ter um filho com um qualquer direito do indivíduo a procriar; quem tem filhos sabe que são uma fonte de responsabilidades permanente, muito para além do período necessário à aquisição de autonomia. Quem concebe a paternidade de uma forma responsável, sabe que não se esgota no direito a conceber. Cujo, por seu turno, depende das escolhas individuais, que também devem ser responsabilizadas, sob pena de nãos serem livres - quando duas mulheres escolhem ser parceiras sexuais sabem que não podem conceber; conferir-lhes essa escolha implica uma decisão colectiva que não é evidente.
Voltanto ao direito à educação, resulta do que se afirmou que esse direito só existe na medida em que a sociedade o decidiu criar. A sociedade organizada, evidentemente - i.e., o Estado. A prova evidente resulta do percurso da idade de escolarização obrigatória. Por conseguinte, a pergunta legítima que ocorre é: então, se é um direito criado pela sociedade, quais são as contrapartidas desse direito? Será que não existem? Não creio. Existem evidentes responsabilidades. E para os dois lados do contrato. Para o aluno, que tem a responsabilidade, e o dever, de aproveitar o direito que a sociedade lhe confere. Numa palavra, os alunos não vão à escola para se divertirem, vão para aprender. Se puderem aprender a divertir-se, tanto melhor, mas antes de tudo mais tem de aprender. É isso que os prepara para o futuro. É por isso que a sociedade cria esse direito à educação, na esperança de que essa preparação para o futuro assegurará um melhor futuro.
Do mesmo modo, a sociedade quando cria o direito à educação deve assumir as suas responsabilidades. Em primeiro lugar e antes de quaisquer outras considerações, a sociedade tem a obrigação de assegurar o acesso de todos à escola, em igualdade de circunstâncias e sem que ninguém seja penalizado pelas suas dificuldades concretas. Esta afirmação, que parece evidente, tem consequências profundas a todos os níveis da organização do sistema de ensino. Desde logo, implica que os pais assumam as respectivas responsabilidades quer em relação à educação dos filhos quer em relação ao funcionamento e organização do sistema escolar. Isto não é um problema DELES; se há problema que seja NOSSO, de todos e cada um de nós, é precisamente este. Porque de todas as actividades organizadas da sociedade é a que mais directamente tem a ver com a preparação do nosso futuro colectivo.
Mas há mais. Na medida em que a sociedade institui o direito à educação, tem também uma correspondente obrigação de adequar esse esforço à optimização dos recursos disponíveis.
Não, não estou a falar de melhor adequação entre custos e benefícios, que obviamente devia ser uma preocupação de todos, incluindo o Estado, do mesmo modo que é uma preocupação de cada um - qualquer um de nós, nas suas escolhas incluindo as mais simples, se preocupa em maximizar benefícios, sejam económicos, de bem estar ou de realização espiritual. Porque superior e iluminada razão o Estado, i.e. a sociedade organizada, há-de agir de modo diferente?
Do que quiz falar foi da assumpção das responsabilidades inerentes à criação do sistema de ensino. Na medida em que se trate de um esforço organizado para promoção de melhores futuros, a escola tem também o dever de potenciar as capacidades de todos os seus formandos. Isso implica que haja ensino diferenciado consoante as capacidades individuais de cada um. Sem dúvida que a escola deve assegurar um mínimo socialmente aceite como desejável. Mas a escola deve também assegurar que os melhores rentabilizam todas as suas capacidades ao máximo. Um bom sistema de ensino tem de ser capaz de detectar os melhores alunos e de lhes fornecer condições para se desenvolverem até ao limite. Só essa maximização de recursos cria condições para a melhoria do futuro colectico - e individual. O erro de harmonizar por baixo o sistema de ensino não é o de assegurar um mínimo de aquisições de conhecimentos. O verdadeiro erro é o de impedir que quem tem capacidades as desenvolva. Em benefício próprio e colectivo.
O preço que a sociedade pagará, se continuar a não o fazer, é altíssimo. Desde logo, porque só os mais favorecidos conseguem tornear o sistema para encontrar mecanismos de realização do seu potencial. Com tudo o que isso tem de corrosivo para a própria existência da sociedade. Uma sociedade injusta não vinga. Mas há pior. Uma sociedade que não explora todas as suas potencialidades não se prepara para o futuro. Muito menos quando a qualidade desse futuro vai ser função da capacidade de inovação.
Por conseguinte, não me falem em direito à educação. Falem-me do dever de estudar e aprender. Falem-me do dever de ensinar. Falem-me do direito de permitir que cada um desenvolva as suas capacidades a bem do colectivo.
Mais uma vez, as minhas reflexões sobre estas matérias me levam a concluir que é preciso destruir os mecanismos centralizados de organização, neste caso do sistema de ensino. Talvez seja necessário garantir centralizadamente a certificação dos conhecimentos adquiridos - i.e. a validação dos exames, para harmonizar as valências adquiridas localmente ao plano nacional. Mas seguramente que a organização do sistema escolar poderia depender muito mais dos seus principais interessados: primeiro, os pais e as famílias; depois as comunidades locais em que estão inseridos; e assim sucessivamente, sempre evitando ou pelo menos minimizando os mecanismos centralizados. Sem responsabilidade não há liberdade. Sem liberdade não há flexibilidade. Sem flexibilidade não há inovação. Sem inovação não há soluções individualizadas. Sem soluções individualizadas não há optimização dos recursos.
PS. Não há bons sistemas de ensino sem bons professores. Portanto, é necessário que o sistema separe o trigo do joio. Não há bons sistemas educativos sem que as famílias se responsabilizem pela aprendizagem dos seus rebentos. Portanto, é obviamente desejável que os pais sejam implicados na avaliação dos professores.
Há tempos um taxista louvava-me os sucessos que o filho tinha alcançado à custa do seu próprio esforço; o único lamento do taxista era não ter podido dar "apoios" ao filho. A certa altura disse-lhe: porventura você ensinou-lhe o mais importante, ou seja a trabalhar e a acreditar em si próprio. E o homem reconheceu que era verdade e comoveu-se.
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