segunda-feira, junho 13, 2005

TRIBUTO

Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade in «Os Amantes Sem Dinheiro»

Eugénio de Andrade, com a sua morte e a de Sophia, cumpriu-se a poesia portuguesa da segunda metade do séc. XX. Com Eugénio vivemos a poesia das palavras prenhes e saturadas de sentido. Todas oferecidas pela razão. Torturadas por uma incessante e incansável busca cuja matéria torna perfeita a sua forma. E ao mesmo tempo embebidas na mais profunda, fina e insustentável sensibilidade. Assim atingindo o fim último da Poesia: a tentativa de perscrutrar o tempo, buscar os aforismos da alma, definir as substâncias últimas da existência. E reconciliar-nos, enfim, com a nossa limitada condição.

Sem comentários:

Enviar um comentário