quarta-feira, junho 01, 2005

A ironia do não gaulês

A velha Gália, e já é um lugar comum referi-lo, não se recompôs com a queda da churchilliana cortina de ferro. De Gaulle, encarnou na perfeição o espírito de “la grandeur de la France”, vinda dos tempos de Colbert e da dinastia dos Bourbons e na vocação proselitista de difusão do ideário revolucionário. E estribada, na sua substância, na ínclita geração iluminista de Montesquieu, Rosseau a Voltaire. O sistema político, a ordem jurídica, tudo erigido como farol ímpar civilizacional. Pergaminhos de uma vanguarda intelectual defendidos no séc. XX, por personagens incontornáveis como Sartre ou Aron, e isto para já não falar das eminências literárias francesas. Paris, mais do que a França, foi o alfobre e o interface de muitas gerações de artistas e intelectuais, berço e encruzilhada de muitos movimentos culturais, do Impressionismo ao Cubismo, do Surrealismo ao Expressionismo. "La crème de la crème" dos grandes filósofos, artistas, escritores, cineastas, arquitectos, políticos, etc., se lá não viveram, por lá, fatalmente, passaram.
E esta era a França que, destarte, possuía um ascendente ímpar sobre a Europa e sobre o resto do Mundo. Era uma superioridade cultural, helénica. E assim, muitas gerações – até à dos meus pais, seguramente – cresceram e referenciaram-se num paradigma imerso na "francofilia". Era incontornável.
Mas tudo mudou, e neste início de milénio, a França não tem nem a pujança económica, e sobretudo a cultural, de antanho. Contudo, as gerações dos 50 para a frente, o que - grosso modo - representam as elites da classe política europeia, são totalmente tributárias desta França universal. Com as sua referências a gravitarem na órbita do espaço de influência cultural francesa.
Daí o não francês ter um significado muito mais profundo do que o peso real de que a sociedade e a economia francesa, efectivamente, justificariam. O não francês é um voto de qualidade. É preciso, pois, reconduzi-lo ao seu espaço próprio. Ao que, na verdade, representa. Numa perspectiva aristocrática da União Europeia, este não, só pode ser visto dramaticamente. Como também o é o putativo não britânico – todavia com menos impacto simbólico.
Mas num vislumbre asséptico e realmente tributário dos valores revolucionários, o não francês jamais poderá ser visto de uma forma tão privilegiada. A Europa a 25 tem que ser vista – e é também esse equilíbrio que nos propõe o Tratado Constitucional – como um espaço de Liberdade, Solidariedade e Igualdade, formado por 450 milhões de habitantes. Nunca como coutada ou prerrogativa de alguns aristocratas. Embora na "realpolitik" actual ainda assim seja pelas razões atrás aduzidas, o certo é que não se pode olhar para a França e atribuir a 10% da população da União, um efectivo poder de veto sobre algo que já cerca de 49% (os noves países que já ratificaram o Tratado Constitucional) da população se pronunciou favoravelmente. E ainda faltam 15 estados dizerem de sua vontade...!

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