domingo, março 07, 2010

Ir embora

A história do Albino, sendo uma sequência de lugares comuns, não deixa de ser extraordinária.
A viuvez precoce e a separação do rapaz começaram a pesar-lhe. A ideia que um futuro padre seria seu filho, embora o confortasse por lhe dar a impressão de que ficava mais próximo de Deus em momentos de aperto, foi-se dissolvendo naquele mal-estar do regresso diário a uma casa em desalinho, a panelas sujas e a uns lençóis cada vez mais encardidos.

Tudo se complicou com um ferimento casual no polegar esquerdo que, tendo infectado, lhe dificultava os manejos do campo e de qualquer insignificante tarefa doméstica. Numa manhã, ao tentar apertar o cordel das botas, perdeu a paciência, atirou a bota para a lareira, transformada em caixote de lixo da casa, e a coxear, com o pé direito calçado e o outro na peúga, abalou pelos campos fora sem perceber ao que ia. Foi.
Alguns viram-no a passar e tanto bastou para que a opinião incipiente de que o Albino era taralhouco se transformasse na reputação do Albino maluco.

Ai pirou da pinha? Pois então havia de pirar dali. França era, nos anos 60, a palavra mágica. Ainda não era velho e não havia de fazer pior que o Acácio, um quarentão que abalara há seis anos e reaparecera há meses com tiques de rico, ainda que adoentado.

A primeira tentativa a salto foi uma fraude que lhe custou as economias e, pior que tudo, o ridículo e a chacota local: o passador largou de noite o grupo dos quatro no alto de um monte, depois de "milhares" de quilómetros numa R4 ronceira, com a informação que já estavam em França e que seguindo um certo carreiro iriam dar a uma vila onde tomariam um comboio para Paris. Afinal, nunca haviam saído sequer de Portugal.

À segunda vez, foram apanhados em Espanha perto da fronteira francesa. A Guardia Civil ofereceu-lhes um enxerto de pancadaria bárbaro (foi a primeira vez que viu um homem a mijar-se e a chorar) e devolveu-os à origem, sem mais cerimónias que um chuto no cú, em fundo de gargalhada geral.

A terceira tentativa foi um sucesso, ou não tivesse sido tudo carimbado e legalizado por uma agência do Porto, pertença de um empreiteiro e de um funcionário da Alfândega que conhecia as pessoas apropriadas. Chegou a Paris esfomeado mas com a certeza de um trabalho de 14 horas diárias a amassar cimento e de uma camarata de zinco ao lado do perférico, na porta de St. Cloud.
O destino, o azar, o fado ou lá o que for quis, contudo, que a experiência fosse breve embora colorida.
(continua)

3 comentários:

  1. Espero que a continuação não demore muito.Excelente esta primeira parte. abraços carlos

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  2. Isto promete!
    Um abraço
    JAC

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  3. Irá o Albino regressar cansado e de mãos a abanar?
    Irá o Albino presentear a sua terra com uma nova casa tipo "maison"?
    Irá o Albino reaparecer como accionista de bancos (mais ou menos estatais) e de empresas diversas?
    Irá o Albino expor a sua colecção de arte num edifício estatal da capital?
    NÃO PERCA AS CENAS DOS PRÓXIMOS CAPÍTULOS!
    farripas.
    PS (salvo seja): já salivo por estas

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