sábado, fevereiro 13, 2010

A caminho

Como é que ele havia de ter boa pinta?
Dir-se-ia que jamais recuperou de ter nascido aos sete meses às mãos de uma parteira local, em tarde chuvosa. Se chorou ao nascer não se ouviu, tal era a gemideira da mãe à mistura com os berros da outra mulher, atarantada entre alguidares e toalhas. Entretanto, uma zaragata acesa na tasca do lado criava o ruìdo de fundo ideal para sugerir a um feto inteligente que seria melhor não fazer muitos esforços para começar a respirar.
Terá sido a sua primeira asneira: inspirar.

Foi um catraio sem história, mas ficou na lembrança de alguns o incidente da catequese. Então o miúdo não teve a insolência de perguntar se as chamas do inferno queimavam os olhos e se os condenados ficavam a esturricar cegos? À conta disso adiaram-lhe a primeira comunhão e, como espigou de repente, as calças compridas que a mãe lhe preparara para a ocasião pareciam zangadas com os sapatos aquando da leva seguinte. A mãe já não assistiu à chacota da canalha pois apagara-se de uma maleita misteriosa antes dessa segunda fornada de santinhos.

O viúvo, aconselhado por uma tia velha e pressionado pelo pároco, acedeu a mandar o garoto para o seminário. Este pai não era má pessoa, não tinha inimigos nem tampouco amigos, mas era conhecido pelo seu defeito de dicção, o que exigia uma paciência de Job a quem o quisesse conversar. Era um homem de poucos gestos e de poucas palavras. Talvez fosse por isso que o miúdo o adorava.

Essa decisão de o separarem do pai e da casa magoou-o profundamente. Mais que a morte da mãe, que era algo definitivo e porque a imaginava no céu, era a ideia de que ia deixar de sentir o cheiro do pai, de lhe ouvir os passos, de o ver arrastar a cadeira à mesa que o esvaziou e o amarrotou. Afinal de nada lhe valia ser o único que na aldeia percebia o pai à primeira.

Quando à partida o homem lhe deu um abraço, o rapazito agarrou-o pela cintura, dir-se-ia que a esconder alguma lágrima nos bolsos do colete e a tirar-lhe um farnel de cheiro que o aconchegasse no futuro. O abade Silveira desatou-lhe as mãos das costas do pai imóvel, que a carreira não condescende com atrasos por pieguices. Não disseram palavra mas foi num trocar de olhares que ele reparou realmente no filho, viu o rapazito, viu-se a si a subir os degraus e olhar-se do outro lado da janela, dois carvões enxutos e brilhantes, e isso é impossível de desatar.

Senta-te – disse-lhe o cura a puxar-lhe pela manga – e olha para a frente que vamos a caminho de Deus. E a caminho de Deus lá foram.

1 comentário:

  1. Grande Douro, esse é que o caminho!
    parabéns
    Vai ser de contos ou de novelas ?
    Um abraço

    Basófias

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