sábado, fevereiro 20, 2010

Balhamedeus

Òleo de Umberto Boccioni "A mãe" - 1906

…o que valia era que nesse período estival se multiplicavam as visitas à parentela e, então, o avô Abel punha em prática os seus talentos de organizador para fazer deslocar aquela trupe toda, ou boa parte dela, a Alvares ou ao Bolo, por caminhos estreitos e ravinas manhosas.

Chamavam-se um ou dois homens do campo e distribuíam-se os meninos e as meninas pelas mulas, dois por animal a agarrarem-se um ao outro entre risadas nervosas e o olho na ribanceira. Às vezes mandava-se vir um carro de bois, que o avô mandara cobrir com um lençol grande, ao estilo far-oeste, e pousavam lá dentro uma dúzia, vigiados por um ou uma das mais velhas, e iam assim pachorrentos saudar um Tio ou ver uns Primos ou cumprimentar uma Avó.

Uma vez o avô entregou ao Anselmo, jornaleiro daqueles sítios, a tarefa e a responsabilidade de levar um carro desses, pejado de catraiada. O Anselmo ia a pé ao lado, a puxar pelos bois e ufano daquele ramalhete que chamava as atenções de quem quer que se cruzasse.

Os problemas começaram do outro lado do monte, pois agora era a descer e o caminho ia a pique. Para quem não saiba, fica já a saber que é tão cansativo descer uma encosta como subi-la e que é seguramente mais perigoso vir para baixo. Um carro de bois não tem travões e se o animal está cansado deixa-se ir. Claro que estava cansado ou não subira ele toda aquela ladeira a levar a canalha.
Quando o carro começou a acelerar, começou também a dar saltos que o caminho era só pedras e veios. E a pequenada assustou-se e o Anselmo a correr e os bois por ali fora e os solavancos cada vez maiores e uns já a chorar e os maiores a gritar “Oh Anselmo, oh Anselmo”, o pano a rasgar-se, os bois a mugirem e a tropeçarem, incapazes de pararem ou sequer de abrandarem, o Anselmo a adivinhar a desgraça, ofegante, a misturar apelos a Nossa Senhora e "balhamedeuses" com palavrões e uns murros aos filhos da puta dos bois, que o Senhor Abel me mata.

Mas o carro não virou. Que susto!
Nessa noite rezaram todos o Terço com outra devoção, até a Luísa que normalmente adormecia no primeiro mistério. Nunca mais ninguém esqueceu essa viagem que se transformou em assunto de conversa e de galhofa de todas as viagens seguintes. Bastava um dos protagonistas dizer a propósito de nada “Oh Anseeelmo!” e era a risota geral. A nossa mãe, que também ia aos saltos nesse carro, nunca mais a esqueceu.
Era assim...

in "Conversas com a mãe" de 'douro'

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