Uma das confusões que mais me irrita, muito embora esteja consciente que frequentemente é intencional, é a que se faz entre liberalismo económico - agora também conhecido pelos epítetos de globalização, neoliberalismo e inclusive de deslocalização - e uma qualquer definição demoníaca de "capitalismo selvagem".
Para esclarecer, cumpre clarificar primeiro. O capitalismo venceu a batalha dos factores de produção. Note-se que essa batalha não era uma noção ideologicamente neutra, muito pelo contrário implicava uma opção na interpretação do fenómeno económico que não era inocente, nem escondia que pretendia basear o progresso, redutoramente reduzido à economia, numa luta de classes determinada pela posse, ou não, dos meios de produção, que é como quem diz do trabalho e do capital. Essa batalha, caso tenha existido, foi claramente ganha pelo capital. Não tanto pelas razões ideológicas normalmente associadas à vitória dos EUA sobre a URSS na guerra fria, erradamente diga-se, mas sobretudo porque o séc. XX demonstrou que sem uma utilização intensiva do capital não há investigação suficiente, que é a base da inovação que por seu turno é a fonte do progresso, especialmente do económico. Seria fastidioso demonstrar mais aprofundadamente esta vitória; quemquer que esteja de boa-fé, há-de reconhecê-la.
Mas há um aspecto menos badalado do triunfo do capitalismo que importa publicitar. Não só esse triunfo permitiu libertar percentagens nunca antes imagináveis de trabalhadores dos empregos mais duros, nos sectores primário e secundário, sem qualquer perda de produto e com grandes ganhos de produtividade, que em última análise é o que permite pagar melhores salários; não só esse aspecto do triunfo é essencial à compreensão da economia moderna, como para além disso é o "trabalho" que o capital vai fazendo por nós que nos permite, e sustenta, os níveis de vida e de solidariedade pública que hoje tomamos por adquiridos. Basta pensar nos níveis de pensões que esperamos.
Assim, o liberalismo económico é na verdade a base da solidariedade actual.
Mas mais do que isso. Não há nenhuma contradição de princípio entre o liberalismo, agora já não apenas económico mas antes filosófico, e níveis elevados de solidariedade colectiva. O ponto essencial do liberalismo é o de aceitar, propor e defender que não há verdadeira alternativa à criatividade individual, para encontrar as melhores soluções aos problemas quer pessoais quer sociais. Porconseguinte, o liberalismo opõe-se essencialmente a quaisquer formas de centralismo, sejam elas colectivas ou de elites.
Por outro lado, nada na filosofia liberal impede que os cidadãos, nomeadamente os organizados em sociedades políticas - que é a entidade que confere direitos de cidadania, estes não existem na natureza - se ponham de acordo sobre o conjunto de direitos que consideram o mínimo essencial sem o qual o mal estar dos outros afecta o meu. Ou seja, a solidariedade é também uma componente do liberalismo, na justa medida em que decorra de um acordo livre entre cidadãos livres (isto é, que não seja imposto). Ora, nessa mesma medida, nada impede que esse consenso seja institucionalizado, nomeadamente através das estruturas do Estado.
Pessoalmente, tenho até muita dificuldade em conceber o liberalismo sem essa componente de solidariedade - porventura por causa da minha formação e opção cristã. Naturalmente, à medida que o progresso o vai permitindo, e na justa medida do bem estar económico-social que se vai atingindo, também é natural que os níveis de solidariedade mínimos se vão elevando. Foi assim na história da Europa, é natural que seja assim no futuro das sociedades europeias que se pretendam coesas.
O que eu contesto é a ideia primária de que esses níveis de solidariedade só serão atingíveis à custa do Estado. Muito pelo contrário, vejo grandes oportunidades, sobretudo em sociedades muito centralizadas como a nossa, para se encontrar mecanismos de elevação dos níveis de solidariedade através do recurso a doses muito mais intensas de liberdade pessoal, nomeadamente económica. Na educação, por exemplo.
Para tanto, basta aceitar, por exemplo, que há níveis mínimos de solidariedade colectiva que são essenciais à plena realização individual, até na perspectiva da simples felicidade individual. Ou, em alternativa, que o melhor aproveitamento dos recursos mais escassos nas sociedades, e entre eles destacaria a capacidade intelectual que está na base de toda a inovação, implica investimento colectivo no potencial dos excluídos à partida. Ou seja, a garantia do acesso de todos a todos os serviços considerados básicos, como a educação e a saúde, é uma pré-condição de um liberalismo humanista. A universalidade desses serviços não é um exclusivo dos modelos colectivistas de organização da sociedade, muito pelo contrário; não é preciso ser social-democrata para acreditar nisso. O que é difícil é ser social democrata e acreditar em formas não centralizadas de atingir esses benefícios (e portanto, não creio que seja o simples facto de os gestores públicos serem sociais-democratas, e já não socialistas, que irá melhorar seja o que for). São precisas soluções novas.
É possível um Portugal melhor. Basta querer.
Meu caro Ventanias,
ResponderEliminarEste é o melhor texto sintetizador das diferenças da direita relativamente à esquerda, no sentido mais moderno e moderado destas duas acepções, que leio desde há muito tempo.
Sem querer desvalorizar a tua reflexão, que é bem focada e útil, julgo que aderes à chamada economia social de mercado ("social-oriented merket economy"). Eu também. Então nas crises, como a actual, as políticas sociais são fundamentais. Mas sempre de acordo com o príncipio "tanto de Estado necessário, o mínimo de Estado possível".
ResponderEliminarInfelizmente, há a tentação do liberalismo, e de achar que a mão invisível resolve tudo...
Um abraço
JAC