quinta-feira, outubro 05, 2006

Liberalismo e conservadorismo, direita e esquerda - contributos para o think tank virtual

Mais uma vez o nosso Daniel nos vem provocar os espíritos com a profundidade a que já nos habituamos, alertando para muitas das confusões que perpassam nos debates sobre estas questões mais ou menos filosóficas que a todos nos inquietam. E ainda bem. Pretendo também contribuir para esse debate, senão para essa inquietação.

Creio ser pacífico, quer para a Esquerda, quer para a Direita, que Portugal vive hoje uma profunda crise, que se manifesta nas nossas preocupações colectivas com o futuro da segurança social, com a consciência da ineficiência do Estado, sobretudo nas suas tarefas mais essenciais como sejam a Saúde, a Educação e a Justiça, com a insegurança que causa a sensação de que as decisões mais importantes não são tomadas pelas razões que são apresentadas ou que as razões expostas não são suficientes ou mesmo determinantes das decisões que pretendem justificar. Dito isto, creio igualmente que há que reconhecer que o actual Governo tem feito um esforço significativo para agir de maneira diferente em relação ao que nos vinhamos habituando. Obviamente, essa diferença não parece suficiente, face à profundidade da desconfiança que em nós se instalou e aos vícios que caracterizam a sociedade em que vivemos, nomeadamente no que respeita à insuficiência da informação que nos é fornecida e à falta de qualidade da mesma. Preferem-se as informações que fornecem boas imagens à importância dos seus conteúdos; mas podia-se investir em produzir boas imagens para bons conteúdos; confundem-se factos com opiniões, muitas vezes sem consciência da confusão, mas podia-se investir em promover a formação dos jornalistas exigindo-lhes, no tratamento dos conteúdos, a obrigação de separar as duas vertentes da notícia. Confunde-se diferença de opinião com interesses, mas podia-se alertar o consumidor para o que é uma visão de um problema, por exemplo político, e o que são as opiniões dos interessados e afectados por essas decisões.

Enfim, o tempo não é apenas de consumismo e imediatismo, é sobretudo um tempo de comodismo - com o consequente conformismo. Esta distinção é, em minha opinião, decisiva, porque não creio nem posso crer que as marcas da modernidade de que também é exemplo a facilidade do acesso às imagens, nos condenem colectivamente a viver com menor qualidade do que a que esteve acessível às gerações precedentes. Pactuar com a interpretação inversa poderá até ser uma reacção natural à famigerada complexização da vida actual, mas não afirma nada de bom, nem muito menos de saudável, em relação às elites que lideram, para o bem e para o mal, a sociedade de que fazemos parte e de que, em última análise, também fazemos parte - tanto da sociedade, note-se, como - para a maioria de nós - das elites que tão bem criticamos.

Perante uma situação destas, que não é exclusiva de Portugal, mas, que se manifesta na sociedade portuguesa com particular acuidade em virtude da descrença colectiva que se apoderou de nós, que fazer? Nada é quanto a mim a única opção não válida.

Portanto, é natural e até desejável que as elites e os seus membros se preocupem em contribuir para o debate das pistas de soluções possíveis e das propostas que conduzam a uma dessas pistas, nem que seja apenas na blogosfera. De alguma maneira, isso será um sinal do incómodo dessa mesma sociedade e uma forma ainda que embrionária de demonstrar que as pessoas não querem escolher a inactividade como forma de reacção principal.

Noutro âmbito mas no mesmo sentido, gostava de partilhar as minhas conclusões sobre os chavões apontados no título. Quanto a mim, a diferença entre Direita e Esquerda reside, essencialmente, no seguinte: a Esquerda não concebe o Homem na sua totalidade; acredita que ele se esgota na sua existência material e portanto empenha-se, e muito justamente nessa perspectiva, na maximização das vantagens que lhe sejam permitidas e possíveis no curso da sua existência física. Essa maximização, quando considerada globalmente para uma dada sociedade, implica quase inevitavelmente uma opção intervencionista, de cariz colectivista e voluntarista, que procure assegurar o acesso do maior número de indivíduos ao maior número de vantagens ou pelo menos ao mínimo comummente imposto de vantagens consideradas socialmente exigíveis. Do mesmo passo, procurará, essa mesma Esquerda, desvalorizar quaisquer concretizações de uma outra concepção do Homem, em particular as que decorram de tradições que não sejam homocêntricas - daí à promoção do aborto livre fica exemplificado com clareza o seu significado.

Decorre do que afirmei que a Direita concebe o Homem para além da sua mera existência física, considerando socialmente desejáveis limites à sua existência individual que lhe permitam respeitar esses outros valores que são imanentes a uma concepção mais global da pessoa. As diferenças nas direitas correspondem, quanto a mim, precisamente à diferente importância que pretendam conferir a esses ou a alguns desses valores e aos métodos que escolham para impor esses limites.

Neste duplo sentido, os totalitarismos de esquerda e de direita não andam muito longe um do outro: apenas partem de diferentes concepções de base para impor de forma totalitária as visões que defendam.

Também o Liberalismo não foi nem é imune à diferença de concepção da Humanidade que esteja na sua base. Assim, por exemplo, poderíamos afirmar que o liberalismo económico é uma doutrina redutora na justa medida em que concebe o Homem apenas como o agente económico, muito embora depois procure maximizar o seu livre arbítrio, como se desse modo se libertasse do pecado original que acabei de apontar - e como bem definiu o nosso Daniel.

Porém, o Liberalismo filosófico não partia de nenhuma dessas concepções redutoras da Humanidade. Muito pelo contrário, enfrentava o Homem como um ser complexo, extravasando e completando-se muito para além da sua materialidade: como exemplo e ilustração citaria, de memória, Thomas Moore, quando afirmava que "não é por obediência ao meu Rei (poder temporal, materialidade, materialismo), nem por obediência ao meu Papa (poder espiritual, espiritualismo, intemporalidade) que escolho o meu comportamento: é por imposição da minha consciência, a quem devo total e absoluta obediência".

Consequentemente, parece-me muito mais importante a distinção entre progressismo e conservadorismo, distinção esta que é transversal à Direita e à Esquerda. Numa simplificação útil, diria que o conservadorismo consiste na atitude, cínica ou não, de aceitar a realidade e procurar assegurar a sua não transformação. Já o progressismo seria a atitude oposta de encarar a realidade como uma matéria pronta a ser transformada, em função das opções escolhidas e dos valores que se pretenda defender.

De qualquer dos modos, o importante será que um democrata reconheça que sem debate não há alternativas e que sem estas não há democracia. Nem muito menos liberdade ou responsabilidade. Porconseguinte, terá sempre de existir uma qualquer diferenciação entre direita e esquerda, socialismo e democracia-cristã, progressimo ou conservadorismo, liberalismo ou intervencionismo, que ajude a promover esse debate.

Pelo meu lado parece-me evidente que a nossa realidade necessita urgentemente de mudança e de alteração. Creio ainda que essas mudanças deveriam permitir a promoção da realização de indivíduos mais completos, mais à imagem da Humanidade de que são parte. Creio finalmente que as soluções centralizadas que temos vindo a aplicar não respondem nem às necessidades actuais da sociedade nem muito menos aos desafios que o futuro já delinea.

Por isso me defino como cristão-liberal, democrata, progressista e preferencialmente não intervencionista.

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