terça-feira, julho 04, 2006

Portugal, direita e esquerda

Se bem percebi os "ventos" das soluções liberais, o futuro das sociedades ocidentais passaria por uma inevitável maior liberalização económica compensada por uma voluntária opção de recentragem no indíviduo. Concordo, mas penso que o assunto justifica um debate mais aprofundado e alargado.

Como não terá escapado aos mais atentos, a designação direita e esquerda decorreu de um acidente histórico: quem estava sentado à direita ou à esquerda da assembleia pós-revolucionária na mudança do "antigo regime" para o liberalismo racionalista, filosófico e político, da França revolucionária. Porém, essa necessidade de designação representa um princípio mais amplo e fundador da bondade dos regimes democráticos: sem alternativa não há debate, sem debate não há luz nem escolha, sem escolha não há democracia nem alternância no poder.

Assumindo que os extremos se tocam e, por conseguinte, se confundem - quer nos métodos quer na retórica, ainda que invocando diferentes princípios e argumentos -, aceita-se que não é daí que se pode esperar o progresso nas sociedades razoavelmente democráticas nas suas estruturas sociais, muito embora possam daí resultar riscos sérios para a sobrevivência dos regimes democráticos. Sobretudo em épocas de grande desilusão e desencanto quer com os regimes quer com as elites.

Por outro lado, decorre daí que as democracias serão tanto mais fortes quanto haja, pelo menos, uma "direita" e uma "esquerda" no arco dos partidos que têm efectivo acesso ao poder. Infelizmente, não tem sido esse o caso de Portugal. Cá em casa, infelizmente bastamo-nos com uma diferenciação de nomenclatura para escolhermos "bandeiras" - i.e., frases diferenciadoras que a imprensa adopta como representativas de uma potencial diferença - como se isso bastasse para provocar debate e esclarecimento. As últimas décadas são prova evidente de que isso não é suficiente. Ainda assim, alegramo-nos a afirmar que já não há diferenças entre direita e esquerda e que o que importa é o "consenso". E depois, naturalmente, pomo-nos todos de acordo: é preciso reformar o Estado, por exemplo; todo mundo concorda. O pacóvio, que somos nós todos, pergunta: como? E as nossas elites, desertas de ideias que representem projectos, vão-nos enganando com afirmações bacocas do tipo "é preciso aumentar a eficácia, desenvolver a eficiência e optimizar os recursos do Estado". Entretanto, as mesmas elites, a cada pequeno encolho que surge vão afirmando que a solução é uma nova forma de actuação do Estado... Não é preciso ser muito informado para perceber onde está o problema.

É aqui que uma nova diferença entre direita e esquerda se pode afirmar. Efectivamente, acredito que no futuro o indíviduo terá um papel muito mais preponderante na configuração das sociedades. Mas não apenas no recurso à ilimitada capacidade de inovação individual - pelo menos a longo prazo - mas também noutras dimensões que, julgo, devem ser revalorizadas.

A título de exemplo, abordaria a questão da solidariedade. Esta só existe em sociedade, por definição. Ora a solidariedade que a sociedade esteja disposta a demonstrar e praticar para com os seus membros depende de um "contrato" entre esses membros, que implica que por cada benefício concedido haja uma contrapartida do beneficiário perante a sociedade.
Sucede que, em Portugal, esse contrato caíu no esquecimento: toda a gente tem direitos e ninguém tem deveres. As leis são para interpretar, os representantes da autoridade não são para respeitar são para ridicularizar, o exercício de funções públicas já não é um serviço é apenas um meio de justificação (e alcance) de benefícios, etc, etc.
Em grande parte, creio que este estado de coisas decorre essencialmente do desencanto da geração do 25 de Abril, que tendo sonhado com uma sociedade sem classes, caracterizada pela generalização do "bem estar social" se esgotou numa vã tentativa de pensar o sonho, que nunca soube concretizar e que a realidade veio a desmentir. Desencantada, essa geração desistiu de se esforçar pelo bem comum, tendo-se rendido aos aspectos mais baixos do que poderia ser um liberalismo selvagem com a desculpa de que "não vale a pena", porque "o sistema é demasiado poderoso para ser transformado". E consolam-se contentando-se, uns a afirmarem-se de esquerda mas sem apresentarem qualquer esforço de renovação dessas ideias em soluções novas e concretas, outros em afirmarem-se de direita e ou desejando impossíveis regressos ao passado ou queixando-se dos obstáculos à transformação do sistema - desde logo a constituição - mas sempre sem apresentarem soluções concretas, para além das banalidades já citadas, e muito menos novos ideais através dos quais fosse possível renovar o referido contrato social.

É aqui, antes de mais, que creio que uma nova direita terá de se afirmar. Não existe um direito ao subsídio de desemprego (nem a qualquer outro benefício social, como por exemplo as pensões de reforma); o que há é um acordo com a sociedade que permite apoiar quem precisa quando precisa. Mediante as devidas contrapartidas, digo eu.
Porque é que os meus filhos hão-de ter de trabalhar para os meus pais se poderem reformar ao fim de uns míseros 36 anos de serviço, quando ainda são muito bem capazes de contribuir para o desenvolvimento da sociedade a que pertencemos?
Porque é que havemos de combater as melhores possibilidades de desenvolvimento e crescimento económico, para artificialmente garantir meia dúzia de empregos sem futuro por tempos inevitavelmente curtos?
Porque é que havemos de sacrificar o desenvolvimento do sistema económico a troco do benefício de alguns capitalistas, normalmente - e muito bem - apátridas nas suas aplicações de capital, ou de meia dúzia de pseudo-membros de elites, quando a primeira opção beneficia toda a gente e a segunda só alguns, para além de agravar os sentimentos de injustiça no todo social?

Muitas mais questões haveria a colocar no mesmo sentido. O ponto é demonstrar que a aposta no indíviduo deve passar por uma maior responsabilização de cada cidadão e sobretudo por uma maior aposta na capacidade dos cidadãos para encontrarem respostas para os seus problemas. É preciso destruir a noção, de esquerda, que todos os problemas sociais são melhor resolvidos centralizadamente. O Estado só é a melhor resposta para as coisas que tem de ser feitas mas não podem ser feitas pela sociedade, i.e. os cidadãos, ou estes não querem fazer. O Estado deve ser tão só e apenas, subsidiário da sociedade. Esse esforço de destruição do centralismo terá de passar por uma muito maior liberdade individual, que implica responsabilização, naturalmente, e por um muito maior recurso aos instrumentos colectivos de proximidade, quer aos cidadãos quer aos problemas. Sem isso não haverá verdadeiro apelo à inovação. Sem flexibilidade, não há estímulo à procura de soluções. Há, isso sim, abandono. Que é, numa palavra, a melhor síntese do actual estádio de crise do País.

PS. Pese embora a alegria que a selecção nacional nos tem feito partilhar colectivamente e que, na minha humilde interpretação, apenas serve para demonstrar que as pessoas estão sempre prontas a lutar por ideais. Desde que estes lhes sejam propostos. Sem medo de mudar de paradigmas.

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