Porventura a característica do nosso País que mais me choca é a da disparidade entre a nossa elite e a nossa realidade. Que passo a exemplificar: as mesmas pessoas que privadamente explicam, com a dose certa de comiseração e a adequada compreensão dos interlocutores, que mil ou mil e quinhentos contos por mês não chegam, pouco depois, e muitas vezes no mesmo palco, afirmam publicamente e defendem convictamente que é absolutamente imprescindível manter e conduzir políticas de moderação do crescimento da massa salarial, reformar os privilégios exorbitantes que a sociedade não consegue comportar, enfim, um chorrilho de verdades económicas inquestionáveis que o elitista consenso não se cansa de impor.
Como é possível que o País continue a aguentar sem reagir?
Em grande parte, a nossa passividade é laboriosamente cultivada pela falta de qualidade da nossa imprensa - no sentido lato, para abranger também os mídia televisivos e radiofónicos. Numa ainda maior parte, penso que o essencial desse divórcio é, hoje, tributário do desencantamento da geração do 25 de Abril, que chegou ao poder - em sentido amplissimo, para abranger o acesso aos meios de influência de opinião - demasiado cedo, demasiado impreparada e demasiado utopista. Salvo raras excepções, sonharam com uma sociedade sem classes e convenceram-se que a sua realização era uma questão de boas vontades. E depois perceberam que não, não era assim; a coisa era um bocadinho mais difícil do que imaginado e além disso assentava em erros filosóficos de princípio que a realidade constantemente sublinhava. Porconseguinte, deram o passo natural. Concluiram que não valia a pena, e renderam-se às virtudes do pequeno capital: para não se considerarem a si próprios vencidos da vida empenharam-se em multiplicar os respectivos vencimentos - já que não se podia melhorar o sistema, melhorava-se a parte que lhes dizia respeito, i.e. os próprios bolsos - e demais regalias associadas ou associáveis através de esquemas conhecidos de partilha de cargos, que entretanto o sistema instalado de centralismo iluminado, permitira multiplicar suficientemente para garantir que o mínimo esforço em prol da Nação, ainda que apenas por via partidária, era rapidamente compensado, de preferência com juros adequados à grandeza das personalidades envolvidas, com todas aquelas mordomias a que tinham adquirido direito.
O país, coitado, deixa-se enganar porque parece que uma prima da cunhada do meu amigo sabe de um lugar na administração onde não se ganha muito mas também se trabalha pouco e se alcança a reforma aos 50 e poucos. Os outros imigram. Ou então, pior, rendem-se a uma vida resignada, em que as regras só protegem os outros, mas sempre permite pagar a renda e o comer. Talvez um dia as coisas melhorem... e já agora, não preciso do recibo, sempre fica mais em conta; a minha filha é que está bem, não conseguiu entrar para jornalismo mas ganhou o prémio de mais rechonchuda lá do liceu e está num concurso de casting para próxima novela da TVI, e como a minha mulher trabalha para uma das senhoras que decide, parece que vai ser escolhida.
Mas o maior problema é cultural. Há séculos que os nossos cronistas sociais mais avisados nos iam informando que a elite estava muito ocupada para se poder preocupar com os problemas da ralé.
Pois bem, é aqui que eu queria chegar. Se todos os potenciais membros da nossa elite continuarem a pensar que não vale a pena tentar, porque é impossível mudar (o sistema), o que vamos deixar aos nossos filhos é pior do que o que recebemos dos nossos pais.
Não me conformo. Pela minha parte a opção está feita. Quero lutar para que não seja assim. Quero morrer tentando. E estou disposto a fazer sacrifícios para poder contribuir.
Creio que há que deixar de ser dogmático, ver de onde vem as coisas que nos levam por bom caminho, mesmo que não venham de onde gostaríamos. Se o Governo governa bem, não devemos ter vergonha de o apoiar. Devemos deixar claro às oposições que esperamos que contribuam para que o Governo governe ainda melhor, nomeadamente no que respeita à destruição desse divórcio entre as elites e a realidade. Mesmo que sejam as oposições oriundas do partido que preferimos. E se estão demasiado ocupadas com as suas quezílias, devemos gritá-lo mais alto.
Serve o que aqui deixo apenas para lembrar que a soberania reside em nós. Só nós podemos impor a mudança. Só nós podemos trabalhar para deixar aos nossos filhos mais do que recebemos. Senão formos nós, serão eles; e deles já sabemos o que podemos esperar.
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