Ontem, assiti à última produção do Círculo Portuense de Ópera e da Orquestra Nacional do Porto: a Flauta Mágica. Sem dúvida uma das melhores récitas que assisti aqui no Porto; companhias estrangeiras incluídas. A nível das vozes, não tínhamos seguramente la crème de la crème do bel canto, todavia foi uma interpretação escorreita e honesta, com a única excepção para a personagem da Rainha da Noite, que necessitaria de uma soprano com um registo vocal superior. A Orquestra esteve ao nível do que já nos habituou. No que tange o arranjo cénico, fiquei verdadeiramente surpreendido. Embora não seguindo o guião original, pois a história desenrola-se sob o pano de fundo do Antigo Egipto, primou pela sobriedade, e pela capacidade de iludir o espectador. Por momentos éramos transportados ao universo onírico dos apaixonados Tamino e Pamina. Uma tela transparente e incolor tapava a boca de cena e, escudada nos efeitos das luzes, criava uma atmosfera diáfana e surreal.
A tudo isto acresce, é claro, o interesse de ver e ouvir uma das óperas mais conhecidas de Mozart. E, decifrar - ao vivo - todas as suas referências e simbologias maçónicas e que se adaptavam às circunstâncias políticas da Europa, designadamente, dos finais de setecentos. Como, por exemplo, o facto de, quer o personagem central Tamino quer o seu comparsa de aventura Papageno, passarem por ritos iniciáticos até alcançarem a Luz, e poderem entrar no Templo. Em Sintra, no Palácio da Regaleira, existe um fosso (qual torre invertida) que remete para este universo fantástico dos ritos inciáticos. É debaixo da terra que tudo se inicia, tendo depois que passar pelos outros elementos, o fogo, a água e o ar. No fundo, um tema sobre o caminho da ressurreição e a morte, de provações que conduzem das trevas ao reino da luz (e estávamos em pleno século das Luzes) por meio de um casamento alquímico de duas naturezas, contrárias mas também complementares. Como sejam as dualidades feminino versus masculino (Tamino e Pamina) e a espiritualidade versus mundanismo, esta aqui reconduzida à relação entre Tamino e Papageno. Ressalta também o facto de o nome de Sarastro, qual sumo sacerdote do Templo da Luz, nos reconduzir para Zaratrusta e no confronta mais uma vez com a constatação de uma nova dualidade: do bem e do mal (Sarastro versus Rainha da Noite). Tudo isto faz pleno sentido pois, no fundo, o que Mozart pretendia era uma exaltação das virtudes da razão e da sabedoria – ideais eminentemente maçónicos – apanágio da instituição a que pertencia e que, naqueles tempos, estava a ser alvo de perseguições por parte do Imperador austríaco. Dizem até que, devido às ligações do Imperador com as sociedades maçónicas, toda a récita era uma dissimulada mas profunda mensagem para o dito soberano. De facto, em face das consequências da Revolução Francesa - a sua irmã, Maria Antonieta, iria ser dacapitada daí a 2 anos - para a Monarquia e as acusações de que quem estaria por detrás seriam as sociedades maçónicas, outra alternativa não lhe restava senão continuar a política de eliminação destas sociedades, já iniciada por sua mãe, Imperatriz Maria Teresa. Por muito que se revisse nos seus ideais.
Numa palavra, mais do que o puro deleite dos sentidos, cativam, nesta ópera, todas as suas singulares circunstâncias e particulares referências. Amanhã e Sábado haverá mais duas apresentações.
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